Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

17 janeiro, 2013

E mesmo que me mostres, da rosa a cabeça entontecida, do vinho, o delírio


Há muito tempo, eu já era uma menina que amava o mar. Corria sobre as rochas, entrava nas grutas, escondia-me nos recantos onde a areia se mantinha molhada e o ar era sempre fresco, passava a mão pela pedra molhada, aveludada, coberta de limos verdes, macios, apanhava mexilhões, saltava por entre as poças de água, mergulhava as mãos nas covas das rochas onde a água do mar ficava retida, sempre com medo que algum caranguejo me mordesse.

Quando eu era muito pequena e tinha cabelos muito compridos (que, quando ia para a praia, a minha mãe apanhava em longas tranças), os meus pais escolhiam um recanto entre as rochas, com sombras, e, sobretudo, onde não houvesse ninguém. Descíamos da estrada para lá pelos rochedos, escadas escavadas na pedra - e eu acho que é desses tempos que me veio o medo pelas alturas, de vez em quando ainda sonho que ando em sítios desprotegidos, muito altos - e passávamos lá o dia. Abrigávamo-nos do sol junto às rochas, ajustávamos o abrigo em função das marés. 

Estávamos mesmo junto à água muito límpida e eu entrava e saía do mar, sem medo, feliz por poder brincar ali onde passavam pequenos cardumes de ínfimos peixes, feliz por nadar e chapinhar num mar que era só meu.

Os meus pais chamavam-me, que eu não saltasse das rochas para a água, que não subisse às rochas muito altas, que não fosse para longe. Mas a minha liberdade era total e o mundo, para mim, era sempre um lugar maravilhoso.

Uma vez apareceu um casal inglês com uma menina da minha idade, muito branquinha, muito lourinha, o cabelo curtinho, tão clarinho. E tinha um fato de banho com folhinho em baixo, muito parecido com o meu. Fui brincar com a menina. Os meus pais eram muito novos e os dela muito velhos. O senhor inglês e a sua simpática mulher admiravam-se com a minha familiaridade com o mar, eu mergulhava, sempre gostei muito de mergulhar, e admiravam-se também com a minha liberdade, era uma pequena menina muito livre, muito alegre. No fim, os meus pais e os dela trocaram moradas. Ela chamava-se Jill e, ao princípio com alguma dificuldade pois o meu inglês ainda era limitado e com facilidade depois, trocámos cartas até quase ao fim da nossa adolescência. Os envelopes eram de papel fininho debruados com uma cercadura às risquinhas encarnadas e azul, porque as cartas iam de avião.

Por altura dos nossos treze, catorze, quinze anos, já era eu que ficava muito admirada com a liberdade dela. 

Penso que foi o contacto tão próximo com essa menina também muito livre - que vivia tão longe de mim, e que me deixava admirada com o que me contava, que me falava com naturalidade da sua precoce perda da virgindade, que me falava das festas de fim de semana já um pouco regadas a vinho e a sexo - que também fez com que eu crescesse sabendo que o horizonte é uma linha imaginária que fica muito, muito distante. 

Talvez também por isso nunca me tenha sentido prisioneira. Nunca em torno de mim se fecharam as fronteiras. 

Eu era, sempre fui, ainda sou, acho que sempre serei, uma menina do mar. E, por isso, por muita cidade que eu pise, por muito que a terra chame por mim, por muita gente que me rodeie, eu sei que é o mar, o silêncio, o mistério do fundo do mar que chama por mim. É de lá que eu vim, do fundo do mar.

Talvez parte de mim a ele volte um dia *.


[Abaixo da fotografia, um poema de uma Poetisa que aqui vem pela primeira vez, Maria Andresen, filha de Sophia. Logo abaixo, um dos momentos mais felizes de que há memória, Maria Bethânia e Rita Lee.

PS1: A praia que acima refiro é a Figueirinha ou Galapos

PS2: * Daqui por muito tempo, espero]


Uma Menina no Mar numa das praias do Ginjal
(a fotografia está com as cores saturadas para não se distinguir a cara da menina
e reforço o que está escrito noutros locais do blogue:
caso me escrevam a solicitar que retire a fotografia, fá-lo-ei de imediato)



                                                   E mesmo que me mostres, da rosa
                                                   a cabeça entontecida, do vinho,
                                                   o delírio, o passo vacilante, do fogo,
                                                   a fúria, a intrepidez e me ensines

                                                   como se barra esse poder ilimitado
                                                   E que, pela carne me chamem a vastidão
                                                   da terra e a truculência do mundo
                                                   O meu caminho é para trás e conduz-te

                                                   para o fundo onde o ventre da impaciente
                                                   Rainha nos espera


                                                   [A "Menina do Mar" de Maria Andresen in Livro das Passagens]

*



Vieste de um lugar bem distante.
Trazias paisagens no olhar,
cheiro da urze, no cabelo ondulante.
Vieste, para conhecer o mar.

A leveza breve do andar.
A suavidade do gesto, o respirar.
Fizeram-me por momentos sonhar,
quando caminhavas junto ao mar.

Encantou-me a luz do sol, no teu sorriso.
Quando me perguntaste onde ia dar,
aquele mar verde, brando e liso.
E eu, respondi, que ao teu olhar.

Encantou-me a delicadeza do teu colo,
quando te sentaste ao meu lado.
E, tirando o casaco a tiracolo.
Sobressaiu teu peito encastelado.

Dissemos coisas belas um ao outro.
Segredaste-me desejos de viajar.
Revelaste-me que és guiada por um astro.
E que te reges pela força desse mar.

E eu, senti poder voar.
Segurando a tua mão junto a mim.
Senti-me ir contigo a esse lugar.
Percorrendo esse mar que não tem fim.


['Tu e o Mar' de Bartolomeu num comentário aqui abaixo]

8 comentários:

  1. Olá,

    Como costuma dizer um dos seus leitores, gostei... e muito!

    Revi-me em quase todas as suas palavras, excepto no medo das alturas.
    Eu tenho a atracção do abismo!
    Onde houver uma falésia, um precipício, tenho que ir lá mesmo à beirinha espreitar...

    E como dizia a Sophia, também eu 'quando morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar'.

    Um beijinho e bom fds.

    Antonieta

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Antonieta,

      Veio pela mão da filha de Sophia... Gostei de a ver hoje aqui, junto ao mar.

      Eu tenho horror de alturas mas só quando estou com os pés no chão. Não me faz a mínima impressão andar de avião, olhar cá para baixo, etc. Agora andar num sítio alto... pavor! Ainda no outro dia, ao ver umas fotografias do Joaquim Castilho feitas no Cabo Espichel me lembrei de como aquele sítio é belíssimo mas que me dá um medo inacreditável, dá ideia que, se me distraio, sou sugada para as funduras.

      Só de pensar nosso já sinto aquele formigueiro ou lá o que é que se sente nos pés, uma vertigem terrível, a sensação de que o chão me vai faltar, os apoios, tudo e que me vou despenhar por ali abaixo.

      Quando era miúda e descia aqueles rochedos não sentia medo mas, à medida que fui crescendo e ganhando consciência, comecei a ter um medo que nem imagina, medo de não ser capaz de continuar e de não ter como sair dali sem cair.

      Mas ficou-me sobretudo desses tempos a liberdade enorme, o mar, o brincar o dia inteiro, as rochas frescas, os limos, as algas macias. Tive uma infância maravilhosa. De tudo isso me ficou aquilo de que hoje sou feita.

      Acho que acontece o mesmo com toda a gente, não é? É a infância que nos molda.

      Um beijinho, Antonieta, e um bom sábado (ao abrigo da intempérie)

      Eliminar
  2. Tu eo Mar.

    Vieste de um lugar bem distante.

    Trazias paisagens no olhar,

    cheiro da urze, no cabelo ondulante.

    Vieste, para conhecer o mar.




    A leveza breve do andar.

    A suavidade do gesto, o respirar.

    Fizeram-me por momentos sonhar,

    quando caminhavas junto ao mar.




    Encantou-me a luz do sol, no teu sorriso.

    Quando me perguntaste onde ia dar,

    aquele mar verde, brando e liso.

    E eu, respondi, que ao teu olhar.




    Encantou-me a delicadeza do teu colo,

    quando te sentaste ao meu lado.

    E, tirando o casaco a tiracolo.

    Sobressaiu teu peito encastelado.




    Dissemos coisas belas um ao outro.

    Segredaste-me desejos de viajar.

    Revelaste-me que és guiada por um astro.

    E que te reges pela força desse mar.




    E eu, senti poder voar.

    Segurando a tua mão junto a mim.

    Senti-me ir contigo a esse lugar.

    Percorrendo esse mar que não tem fim.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Bartolomeu, como é possível?

      Fico fascinada. Tal como pergunto aos leitores cujas palavras vêm aqui pousar como pássaros atrás de palavras, pergunto-lhe também a si? Nascem assim de repente estes belos poemas? Tudo se conjuga de tal maneira bem que fico perplexa.

      Estou encantada. O poema já lá está ao pé do poema da filha de Sophia.

      Muito obrigada!

      Eliminar
  3. A tua prosa poética, de Um Jeito Manso, inspira a minha poesia prosaica, de um jeito tosco!
    Eis a explicação para a espontaneidade dos versos que escrevo.
    ;)))

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E eu só posso agradecer. Um pouco comovida, confesso.

      Eliminar
  4. Pôr do Sol19 janeiro, 2013

    Só hoje, sábado, estou a pôr a leitura em dia.

    E depois de um dia de completa invernia, que saudade do Verão! Deus meu!

    Na minha aldeia ainda existem praias assim(excepto em Julho e Agosto, claro). Fez-me recordar dias da minha infancia em que me sentava na beira das rochas olhava para o fundo e imaginava o que haveria depois daquela areia branquinha. Sonhava que um dia se abriria um tunel e seria convidada a entrar num reino de sereias, e peixes lindos e que num trono de conchas de madreperola estava sentado Neptuno que me mostraria as maravilhas e segredos do fundo do mar.

    Curiosamente vejo, hoje,em filmes de desenhos animados cenas muito semelhantes ao meu sonho.

    Adoro o mar, mas em dias como o de hoje tenho-lhe um misto de respeito medo que prefiro não me aproximar.

    Obrigada pelas poesias.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Pôr do Sol,

      Quando eu era pequena, tinha um livro que era O Mar com fotografias do fundo do mar, dos peixes, das algas, tudo com nomes científicos. Eu adorava aquilo, era tudo misterioso, o verde do fundo do mar, a cor dos peixes, as palavras estranhas. Sempre me atraíu muito o ar.

      Gostei de ler o que escreveu, identifico-me muito com esse tipo de sonhos, apetece-me sempre escrever histórias sobre deuses e pessoas que vivem no fundo do mar.

      Acho graça dizer que lhe tem respeito pois eu também. Gosto tanto do mar... e tenho medo de andar de barco. O meu sogro tinha um barco a motor e eu odiava andar, o meu marido e o meu cunhado e um primo andavam muito depressa, gostavam de fazer uma espécie de 'cavalinhos' e rodopiar e eu detestava aquilo. E não me seduz embarcar num cruzeiro, acho que me faltaria a segurança. Curiosamente não tenho qualquer medo de andar de avião.

      Obrigada eu, pela companhia.

      Um beijinho, Sol Nascente.

      Eliminar