Esperava por ti. Alisava a colcha, endireitava as almofadas, via-me ao espelho, penteava-me, espreitava a janela, via as horas, bebia água, ajeitava as cortinas, baixava um pouco o estore, espreitava a janela, via-me ao espelho, via as horas, espreitava a janela.
O gato olhava para mim. Eriçava o pêlo, ansioso, olhava para mim, saltava para o parapeito, olhava para mim.
Esperávamos por ti. Uma inquietação, uma ansiedade, uma vontade de ti, e tu, quando chegavas nem suspeitavas. Estávamos calmos, em silêncio esperando por ti - assim nos vias.
A casa estava na penumbra, o estore para baixo, os cortinados corridos. Apenas eu e o gato. Gostavas de chegar, furtivo, coração aos saltos, e ver que nós estávamos ali, tão serenos. A paz da casa e a paz da nossa serenidade tranquilizava-te. Nunca desfiz essa tua ideia, nunca te contei da nossa ansiedade quase descontrolada.
Depois abraçavas-me, beijavas-me, impaciente, despias-me, querias logo a minha pele. E eu deixava porque o meu corpo só te queria a ti. Nessa altura, eu fechava a porta para o gato não nos ver, sempre aquele receio que o gato depois revelasse o nosso segredo. O gato, tu mesmo o dizias, é meio gente, meio deus, e eu acrescentava que era também meio espírito de pássaro, de pássaro cigano, sem querer saber que três metades são mais que um e que isso não faz sentido.
Deitava-me então sobre ti, abraçava-me e deixava que me abraçasses com muita força, oferecia-me e tu oferecias-te. Éramos então gatos com cio, amantes, clandestinos na penumbra de um abrigo.
A seguir, atencioso, levantavas-te e ias abrir a porta ao gato. E este vinha, cúmplice, os grandes olhos cheios de magia e malícia, olhando-nos, compreensivo, protector.
Quando partias, eu espreitava-te pela janela e o gato encostava-se a mim, triste pela tua partida, triste pela minha tristeza.
E, até que viesses de novo, desfiávamos as horas, desfiávamos lembranças, segredos, amores proibidos, os olhos húmidos de saudade. Eu e o gato.
[Logo abaixo de um dos gatos do Ginjal que me traz encantada, mais um belo poema de Maria do Rosário Pedreira, já o décimo oitavo. Logo a seguir mais uma maravilhosa música de Ernesto Lecuona]
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No Ginjal, o meu belo gatinho tigrado, lindo, lindo |
O gato lembra-se de ti nos intervalos. Espera
de olhos acesos as histórias que nos contas.
Passeia-se inquieto sobre o meu parapeito e eriça
o pêlo, cúmplice, quando pressente que regressas.
Chegas sempre de noite. Sei quem és e ao que vens
e ofereço-te o silêncio de um pequeno quarto recuado,
as sombras das traseiras na minha pele, o tempo
de repetir um gesto inevitável. Ouço-te contar
a mesma lenda com lábios sempre novos. Aprendo-a
e esqueço-a . Nunca a saberemos de cor, o gato ou eu.
Depois partes. Levas contigo a tua voz, mas a música
fica. Eu fecho as portadas devagar. O gato mia baixo
à janela. Ninguém acena: guardamos com os outros
a segredo das tuas visitas. Ambos. O gato e eu.
[Poema de Maria do Rosário Pedreira
in Poesia Reunida]
*
Igual à minha Necas
raiada de três tons
(quem sabe da família)
Era tão pequena
ainda nem andava
desamparada
gatinhava no meio da rua
tão frágil
tão fugidia da ninhada
e nós de partida
finalmente as férias desejadas
as malas arrumadas
o carro já ligado
portão fechado
e o seu miado ai aquele miado...
Foram vitaminas biberons
(um ai Jesus)
e depois se fez crescida e deu em namorar
pois não
um gato grande e louro
rondava a porta
fazia serenatas (garanto eu)
e lá se foram encontrando em segredo em bailes de garagem
coisas da vida...até que aconteceu
pior foi mesmo
quando nos vimos de parteiros
e ela se enroscava em nós gemendo
as dores pareciam lancinantes
e o seu esforço quase em vão
e aquele pelo multicor molhado
até que um gato bebé louro louro igual ao pai
finalmente rabiava
e ela lambia lambia aliviada
e nós ali embasbacados
chorando de alegria diante do milagre da vida
A Necas sempre foi arisca
poucos lhe tocam
(ainda hoje)
mas a MÃE NECAS
cheia de carinho
vigiava de perto o seu menino
tanto cuidado tanto amor
que fez dele um gato tão lindo enorme mimado e sonso
(juro que é)
que ainda hoje é conhecido por"Bébé"
['A MINHA NECAS' de 'Era uma Vez' num comentário aqui abaixo]