O fogo que arde nos seus peitos apenas se pressente. Ninguém o vê e eles são os primeiros a negá-lo. Não existe. Não existe - repetem um ao outro, aos outros, a si próprios. Animal rafeiro que se chegou a eles sem que nada tivessem feito para isso, esse fogo. Não o chamam, não lhe dão guarida, não lhe dão de beber ou comer. Ignoram-no. E, no entanto, eis que se alojou dentro deles, sábio e estranhamente paciente.
Poder-se-ia dizer paciente e meigo mas, pensando bem, dele não se poderá dizer que é meigo. Irreverente, talvez. Atrevido, sim. Se falasse talvez também o ouvíssemos a usar a palavra esperança. L'espoir. Talvez paciente justamente porque acredita. Mas nada mais que isso pois tudo o resto nunca é confessado e tudo o que é dito se contradiz, tudo desafia e subverte.
Atravessam os dias para chegar aqui, ao crepúsculo, e, no silêncio da noite, contemplarem de longe, com mil cautelas, esse fogo clandestino, insolente, que bem sabem estar ainda por abrir.
É um daqueles fogos que não se percebe, que nunca poderá ser explicado, que apareceu nesta indecifrável encruzilhada, que se instalou dentro deles, que os aproxima neste espaço sem coordenadas, em que se desconhecem, lost in translation, both, em que não conseguem aproximar-se, em que não descobrem como extingui-lo.
E assim, em segredo, em silêncio, escondendo de si próprios e dos outros todas as evidências, na maior solidão, escrevem palavras em esperanto nas quais juram que não foram feitos para o abandono e onde se prometem fulgurantes raios de um fogo ainda por abrir como se esse fogo sobre o qual perigosamente se debruçam fosse uma misteriosa flor de carne e perdição.
Mas um dia
a uma hora de crepúsculo qualquer,
quando mais sós nos encontrámos,
raiou de súbito nas praias
um fulgor de fogo.
E debruçados sobre os mares
dissemos
que foram feitos
não para o abandono
mas para neles florir
a grande e turva flor
desse fogo ainda por abrir.
[De Carlos de Oliveira in Trabalho 'Poético']
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Fotografias feitas, como geralmente, no Ginjal