Pego em palavras e misturo-as. Não quero saber do sentido das coisas. Se o poema tem palavras como 'outro', 'longe', 'imaterial' e 'ausente' é nelas que, ao acaso, vou pegar para desenhar outros significados. Acasos. Gosto de acasos. Assim também a escolha do poema. Abro a estante, puxo um livro sem saber o que procuro, disponível para o acaso. Com ele ao meu colo, sem saber o que vou encontrar, abro numa página e, sem pensar no que transcrevo, transponho para o écran branco as palavras que não são minhas. Aliás, sinto que nunca são minhas as minhas palavras. Só quando, às cegas, deixo que se percam de mim. Por exemplo, se escrever, do nada, sem querer saber do seu significado, qualquer coisa como:
Traduz o que escrevo, encontra o que se oculta no que escrevo, inventa uma língua só tua para o que se esconde à vista de todos, inventa sentimentos para elas, abraça o remoinho que se forma quando se soltam os pássaros que as habitam, guarda-as onde eu não mais as encontre, para sempre escondidas de mim, numa outra língua, inexistente, indizível.
Aí, quando as palavras não fazem sentido e nascem do nada, aí talvez sejam minhas. Mas não sei, não as reconheço.
Mas estas que agora vou escrever não são minhas. São nada. São sombras, reflexos. Colho-as do poema, misturo-as, abro a janela e deixo-as sair:
Estás aqui e estás longe. Respiras e não te ouço. Aproximas-te para te esconderes dentro de ti. Foges. Quanto tempo passou desde que deixaste de existir? Estás mas nunca és tu. Brincas e finges que estás num jardim mas não estás, estás ausente, longe, muito longe, imaterial, sem rosto, sem nome, perdido num vasto e profundo silêncio.
Também eu sou nada, uma presença intangível feita apenas de palavras, alguém que é apenas um rasto que fica de quem passou. Não fujo. Simplesmente não existo. Uma presença ausente.
Perdidos num espaço vasto, infinito, silencioso. Ambos.
Palavras sem significado, pois. Poeira cósmica que ficará a flutuar na imensa distância que nos cerca.
Quem está aqui
cada vez mais longe?
O que fala foge
para dentro de si.
Quanto tempo passou
pelo que já não sou
em que outro lugar
onde não estou a estar?
Alguém brinca infinitamente
num jardim e em mim
lembrando-se de isto em mim,
imaterial e ausente.
E sinto em alguém
que tudo é tudo
e eu também,
vasto e profundo.
['Lugar' de Manuel António Pina in 'O caminho de casa']
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(Fotografias minhas, feitas no Ginjal)
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