Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

29 julho, 2019

A grande e turva flor desse fogo ainda por abrir






O fogo que arde nos seus peitos apenas se pressente. Ninguém o vê e eles são os primeiros a negá-lo. Não existe. Não existe - repetem um ao outro, aos outros, a si próprios. Animal rafeiro que se chegou a eles sem que nada tivessem feito para isso, esse fogo. Não o chamam, não lhe dão guarida, não lhe dão de beber ou comer. Ignoram-no. E, no entanto, eis que se alojou dentro deles, sábio e estranhamente paciente.

Poder-se-ia dizer paciente e meigo mas, pensando bem, dele não se poderá dizer que é meigo. Irreverente,  talvez. Atrevido, sim. Se falasse talvez também o ouvíssemos a usar a palavra esperança. L'espoir. Talvez paciente justamente porque acredita. Mas nada mais que isso pois tudo o resto nunca é confessado e tudo o que é dito se contradiz, tudo desafia e subverte. 

Atravessam os dias para chegar aqui, ao crepúsculo, e, no silêncio da noite, contemplarem de longe, com mil cautelas, esse fogo clandestino, insolente, que bem sabem estar ainda por abrir.

É um daqueles fogos que não se percebe, que nunca poderá ser explicado, que apareceu nesta indecifrável encruzilhada, que se instalou dentro deles, que os aproxima neste espaço sem coordenadas, em que se desconhecem, lost in translation, both, em que não conseguem aproximar-se, em que não descobrem como extingui-lo. 

E assim, em segredo, em silêncio, escondendo de si próprios e dos outros todas as evidências, na maior solidão, escrevem palavras em esperanto nas quais juram que não foram feitos para o abandono e onde se prometem fulgurantes raios de um fogo ainda por abrir como se esse fogo sobre o qual perigosamente se debruçam fosse uma misteriosa flor de carne e perdição.


Mas um dia
a uma hora de crepúsculo qualquer,
quando mais sós nos encontrámos,
raiou de súbito nas praias
um fulgor de fogo.

E debruçados sobre os mares
dissemos
que foram feitos
                                                           não para o abandono
mas para neles florir
a grande e turva flor
desse fogo ainda por abrir.


[De Carlos de Oliveira in Trabalho 'Poético']

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Fotografias feitas, como geralmente, no Ginjal

26 julho, 2019

Nem no cântico dos seios nem no soluço das pernas





Digo-te que sou bicho vindo do ventre da Terra, que ando pelos campos enterrando as mãos no barro, deslizando pelos campos de urze e rosmaninho, raspando as unhas no tronco das árvores, o corpo despido para melhor receber o sol e o canto dos pássaros, o colo contendo o soluço que cala uma saudade desconhecida, as pernas tremendo com o peso de uma ausência indefinida. Digo-te que sou uma mulher que vem do tempo dos silêncios e das trevas, que mergulho as mãos nas águas frias e limpas, no corpo quente das palavras. Digo-te que me entrego ao sonho, ao acaso, ao luar, à noite, à loucura. Digo-te sem saber porque digo e  digo-o de joelhos, digo-o como se dissesse a verdade.

E, então, fecho os olhos, aspiro o ar fresco dos montes, imagino raízes que se enleiam, cânticos de água nascente, encruzilhadas nas florestas, clareiras fulgentes, abismos atraentes. E, quando menos espero, começo a ouvir a tua voz que me chega não sei de onde, uma voz funda e rouca que vem talvez de dentro da Terra, talvez de dentro de mim, e que me traz o perfume dos segredos sem nome, uma voz que transporta todos os perigos do mundo.


É quando estás de joelhos
que és toda bicho da Terra
toda fulgente de pêlos
toda brotada das trevas
toda pesada nos beiços
de um barro que nunca seca
nem no cântico dos seios
nem no soluço das pernas
toda raízes nos dedos
nas unhas toda silvestre
nos olhos toda nascente
no ventre toda floresta
em tudo toda segredo
se de joelhos te entregas
sempre que estás de joelhos
todos os frutos da Terra


[De David Mourão-Ferreira in 'A arte de amar']

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[Fiz as fotografias no Ginjal]

25 julho, 2019

E o seu nome seja o seu próprio pudor




O silêncio envolve-me e eu, nua, deixo que se revelem os meus secretos impossíveis, essa estranha conjugação de impossíveis que, de repente, se torna desmando, tropel sem comando. Descarados, insolentes impossíveis uivam, cantam, voam.

Querem levar-me não sei para onde. Serão lobos, serão bardos, serão espíritos cadentes, pássaros que arrastam as asas em terra. Não sei.

No vazio da noite, sente-se, em volta da gruta, o bafo quente de presenças múltiplas, múltiplos os nomes. As palavras vibram e o silêncio que me envolve teima em despir-me. E eu não quero. Não, não e não. O pudor a guardar a  virtude.

E sinto que lá fora os lobos, afinal um só lobo, tenta afogar o pudor deixando cair o nome, todos os nomes, à porta da gruta silenciosa.


Para que uma só coisa
vibre
na sua presença nua
para além da conjunção dos possíveis

é preciso que o silêncio a dispa
e o seu nome seja o seu próprio pudor



[De António Ramos Rosa in 'A intacta ferida']


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Como é bom de ver fiz as fotografias no Ginjal

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24 julho, 2019

Para que tu existas




Mil rostos, mil nomes, mil identidades. 

Numa ilha, numa casa perdida no mundo, inventando personagens, sem leme, sonhando com os deuses que habitam memórias muito antigas, construindo segredos, vive aquele que por vezes acredita que não existe. Não sabe se as feridas que recorda são suas, se dos lobos que cruzam as noites tristes, se dos personagens solitários que atravessam as madrugadas em busca do silêncio. Não interessa: são feridas intactas para as quais não há consolo. 

Os nervos adormecidos, as lágrimas esvaídas, as mãos sem força, o coração falando uma língua estrangeira, ele segura a taça vazia na qual se reflecte um corpo indefinido, desconhecido, um corpo que vem de um outro tempo, de uma terra desconhecida e longínqua, um corpo feito de palavras nuas, inexistentes.


Para que tu existas
com todos os teus nervos
como linhas de força
empunho a minha ferida
como se fosse um leme
Os segredos mais vivos
assomam-se a um rosto
onde sonham as ilhas
onde crescem as taças
dos deuses terrestres


[De António Ramos Rosa in 'A intacta ferida']

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Como sempre, fiz as fotografias no Ginjal

23 julho, 2019

Em mim, imaterial e ausente





Pego em palavras e misturo-as. Não quero saber do sentido das coisas. Se o poema tem palavras como 'outro', 'longe', 'imaterial' e 'ausente' é nelas que, ao acaso, vou pegar para desenhar outros significados. Acasos. Gosto de acasos. Assim também a escolha do poema. Abro a estante, puxo um livro sem saber o que procuro, disponível para o acaso. Com ele ao meu colo, sem saber o que vou encontrar, abro numa página e, sem pensar no que transcrevo, transponho para o écran branco as palavras que não são minhas. Aliás, sinto que nunca são minhas as minhas palavras. Só quando, às cegas, deixo que se percam de mim. Por exemplo, se escrever, do nada, sem querer saber do seu significado, qualquer coisa como: 
Traduz o que escrevo, encontra o que se oculta no que escrevo, inventa uma língua só tua para o que se esconde à vista de todos, inventa sentimentos para elas, abraça o remoinho que se forma quando se soltam os pássaros que as habitam, guarda-as onde eu não mais as encontre, para sempre escondidas de mim, numa outra língua, inexistente, indizível
Aí, quando as palavras não fazem sentido e nascem do nada, aí talvez sejam minhas. Mas não sei, não as reconheço.

Mas estas que agora vou escrever não são minhas. São nada. São sombras, reflexos. Colho-as do poema, misturo-as, abro a janela e deixo-as sair: 
Estás aqui e estás longe. Respiras e não te ouço. Aproximas-te para te esconderes dentro de ti. Foges. Quanto tempo passou desde que deixaste de existir? Estás mas nunca és tu. Brincas e finges que estás num jardim mas não estás, estás ausente, longe, muito longe, imaterial, sem rosto, sem nome, perdido num vasto e profundo silêncio. 
Também eu sou nada, uma presença intangível feita apenas de palavras, alguém que é apenas um rasto que fica de quem passou. Não fujo. Simplesmente não existo. Uma presença ausente. 
Perdidos num espaço vasto, infinito, silencioso. Ambos. 
Palavras sem significado, pois. Poeira cósmica que ficará a flutuar na imensa distância que nos cerca.


Quem está aqui
cada vez mais longe?
O que fala foge
para dentro de si.

Quanto tempo passou
pelo que já não sou
em que outro lugar
onde não estou a estar?

Alguém brinca infinitamente
num jardim e em mim
lembrando-se de isto em mim,
imaterial e ausente.

E sinto em alguém
que tudo é tudo
e eu também,
vasto e profundo.


['Lugar' de Manuel António Pina in 'O caminho de casa']

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(Fotografias minhas, feitas no Ginjal)

22 julho, 2019

A poucos é dado conhecer o inimigo, o duplo




Um jogo. Uma respiração que se pressente, uma inquietação latente. Um desafio que vai e vem e vai e vem. O espelho e o espelho. A imaterialidade das palavras como instrumentos de um jogo de espelhos.
Eu avanço, tu avanças, eu avanço, tu recuas, eu recuo, tu avanças. Uma dança que talvez seja infinita. Eu provoco, tu reages, eu desafio, tu perguntas, eu não respondo, tu quase adivinhas, eu dou pistas, tu não as queres ver, eu escondo, tu espreitas, eu disfarço, tu arriscas.
E, agora que escrevo, tu que tudo sabes, diz-me: escrevi como se fosse eu ou como se fosses tu? Quem é o duplo nesta história? Eu? Tu?

Adivinha.

Olha, e se eu te dissesse que sei? E se te dissesse que sei quem está atrás de todas as máscaras? E se te dissesse que podes continuar a jogar, a fazer de fantasma, a aparecer como um nobre chevalier, como um trobadour ou como um lobo solitário que saberei sempre quem se esconde sob os mais diversos disfarces?

Não é preciso grande fé, sequer a little leap of faith, porque, de facto, não passa de um tiny, frivolous mystery. Conheço a tua respiração. 

Há quanto tempo? Há quantos anos? 

E, no entanto, dear ghost, há a questão da verdadeira chave que permitiria descodificar as palavras escritas no vento, que permitiria arrancar a máscara ao duplo para que o verdadeiro rosto aparecesse, que permitiria perdoar o inimigo que um dia...

Tento recuar. Qual o dia? Qual a palavra? 

Tento reconstruir a cartografia de desencontros embora saiba que não há coordenadas que possam verdadeiramente explicar esta sinuosa dança. O tempo esbate os dias, as palavras, a semente de tudo; mas não interessa. São dois mundos paralelos, jamais se encontrarão, tu sabes.

Tantas vezes parecemos não perceber que há ecos que se propagam até ao infinito sem que nunca encontrem o que esteve na sua origem.

Mas assim é, assim será. E a chave que descodificaria de vez todo o enigma, dear ghost, believe me, I will never use it, never ever. 


Estas palavras são o eco de uma outra coisa
que provavelmente nunca encontrarás.
A poucos é dado
conhecer o inimigo,
o duplo,
o que espera por nós (quase sempre em vão) até ao fim.

Fantasma adiado,
só ele tem a chave
deste jogo.


['Ainda a poesia' de Luís Filipe Castro Mendes in 'Lendas da Índia']


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As fotografias, como sempre, foram feitas por mim no Ginjal

21 julho, 2019

Uma teia que se desfia pouco a pouco





Escuta. 

Não te aproximes. Não sabes o perigo que corres. Fica aí, longe de mim, mantém-te em terra segura. Afasta-te. Não tentes saber de mim, nem tentes ver-me, nem tentes espreitar-me nem que seja apenas através das palavras que escrevo. 

Tem cuidado. Não corras riscos, não te aproximes do calor, não te arrisques que o fogo é abismo do qual não deves acercar-te, nunca, nunca. 

Não sabes que há um certo animal traiçoeiro, bicho calado que espera pelo momento em que a caça não vai conseguir escapar-lhe, bicho que atrai à sua teia quem vem sem cuidados, bicho de quem deves manter-te distante?

Escuta o meu conselho. Pára por aí, recua, esquece. É que, se deres mais um passo, um só que seja, vais correr o risco de ficar aprisonado, atraído pelo fogo de um olhar que nunca pousará em ti, e tu preso, preso até ao fim dos tempos, preso à invisível teia do que nunca será recíproco e tu para sempre preso, para sempre. Por isso, foge, foge, foge de mim. 

No entanto, sinto-te aí, sinto a tua respiração, sinto o bater do teu coração, sinto a tua inocente vontade em abeirares-te, sinto-te, sinto-te tão perigosamente perto. Apesar do silêncio que paira entre nós, apesar da distância, apesar de não usar o teu nome nem tu o meu, apesar de nos desconhecermos, apesar de tudo, sinto-te aí, junto a mim, tão junto, tão, tão perto de mim. E isso é tão perigoso. Saberás quanto? Diz-me: não sabes que há riscos que não se podem correr?

Olha, ouve-me, foge de mim antes que a teia que nos separa se desfie e que para sempre chores o que nunca conseguiste nem conseguirás alcançar.

Foge, doido, foge.


Cuidado. O amor
é um pequeno animal
desprevenido, uma teia
que se desfia
pouco a pouco. Guardo
silêncio
para que possam ouvi-lo
desfazer-se.


[de Casimiro de Brito]