Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

21 dezembro, 2015

Ah, eu sei agora que é magia





Olhou-me nos olhos como se me inquirisse. Dócil, eu, aproximei-me, devagar. Continuou a olhar-me. Baixei-me, tentei perceber. Olhava-me como se me quisesse dominar, como se me quisesse fazer sentir que tinha que ser eu a ceder. E eu ali, em silêncio, disposta a todos os olhares.

Então desviou os olhos. Olhei-o bem de frente, eu já quase de joelhos, que me olhasse, bchhh, bchhh, bichinho, bchhh, bchhhh, bichinho lindo... Nada. Olha, olha para mim, bchhh, olha, bichinho, bchhhh. Nada.

Não insisti. Tenho o meu orgulho. Não queres, não queiras. 

Mais à frente ainda pensei voltar-me para trás, ver se me seguia, se queria, afinal, a minha companhia. Mas não o fiz. Orgulho, esse grande inimigo dos acasos. Segui o meu caminho.

Dia de gaivotas pensando na vida, contemplando o mundo, dia de gatos sob as árvores, trepando aos muros, deslizando entre sombras. Dia de veleiros brancos, vermelhos, deslizando no azul, entre árvores. Dia de deslumbramentos.


E eu vou caminhando. A terra está macia, a relva está verde, o rio corre azul, o céu abre-se para receber aqueles que querem sentir a serenidade das nuvens que correm devagar ou dos amantes que se abraçam rente às águas, abençoados por quem passa.

Não sei ainda onde me levam os meus passos. Não sei como vim aqui parar. Não sou daqui. Que raízes são estas que se estendem até ao mar? Que asas são estas que se levantam para me levar a voar? Que amor é este que sinto por tudo? 
Pelas palavras, pelas águas, pelos céus, pelos pássaros, pelos barcos, pelos gatos, pelas paredes, pelos olhares recordados, pelos sorrisos imaginados, por quem o meu coração bate, por quem o meu coração aconchega. 
Um amor assim não tem explicação. Parece ilimitado, parece intemporal. E é inocente, alegre, livre. 

E eu caminho, sem explicações, como se fosse uma gata, uma gata deslizando sobre o azul, como se me nascessem asas, como se pudesse ir para o alto, para lá de onde se vêem as belas cidades, os pequenos homens, para lá onde as angústias perdem o motivo, onde os medos são injustificados, lá onde as saudades aumentam, aumentam tanto, lá onde me sinto tão longe, tão perto, tão livre, tão ilimitada, tão tua.

Não sei explicar, não sei mesmo. Mas dizem-me que é  magia, que é imagiação a explicação -- e eu acredito porque é bom acreditar no que não tem explicação.


Ah, eu sei agora que é magia,
que é imagiação a explicação
disto de estar aqui e não ali,
de vir aqui parar,
de vir aqui andar
e ter um chão onde os meus passos
de gazela insegura
se aventuram no escuro.
Eu sei agora algumas coisas
que explicam o que nada poderia explicar,
e o que não sei ainda
irei imaginá-lo numa não sei que paz
que é imagiação.

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Fiz as fotografias este fim-de-semana no Ginjal.
O poema é 'Ela', poema 33, de Um Teatro às Escuras de Pedro Tamen.
Barenboim interpreta de Bach: Goldberg Variations - Aria
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05 novembro, 2015

Com as letras do teu nome escrevo sal e sol, procuro o sul - azul é a bandeira do teu nome.




Não digo o teu nome. É um segredo só meu. Mas ele vive, letra a letra, impresso no meu coração. É um nome que quase escondo de mim, que esqueço, que soletro em silêncio. Soletro só para mim, sem saber porquê. Mas fico-me pela primeira letra, logo as outras abafadas pelas lonjuras da noite, aturdidas pela luz branca da lua lá tão distante.

O teu nome chega-me como num sonho, nas asas brancas de um grande pássaro que vem do lado de lá do rio, que traz o sal das praias do sul, o sol da praça luminosa onde me perco pensando em ti.

O teu nome mistura-se com o meu, unidos, apaixonados, abraçados, abraçados, o teu nome levanta o meu no ar, o teu nome faz o meu voar. 

O teu nome tem transparências e cores dentro, tem palavras muito leves, feitas de um ar muito puro, tem cores suaves, notas de música, asas de anjos brancos, de borboletas azuis, de flores cor de rosa, desenhos de amor, pétalas, saudades, acordes feitos de harmonia e luz.

O teu nome tem mãos cheias de paz, tem um olhar que me faz sorrir, tem uma ternura que me beija. O teu nome é meu, vive em mim, dorme comigo, habita os meus sonhos, debruça-se sobre mim, afasta o cabelo do meu rosto, acaricia o meu despertar, deixa doces alvoradas nas minhas manhãs. Traz serenidade às minhas noites.

O teu nome vive guardado dentro de mim. 


Muitos anos depois foi o teu nome
que veio ter comigo.
A casa  está agora cheia de palavras
onde o teu nome ecoa. Falam de ti
os livros, os quadros nas paredes,
os pequenos ruídos da noite.

O teu nome é um pássaro, um gato
que ronrona, um comboio
que atravessa os campos da memória.
Está em toda a parte o teu nome.
Paris, Zurique, Amesterdão, Madrid
são cidades da linha to teu nome.

Eu chamo-me o teu nome, chama
onde me aqueço e esqueço
tudo o que estava antes de ti.
Com as letras do teu nome escrevo
sal e sol, procuro o sul, azul
é a bandeira do teu nome.

No teu nome viajo, no teu nome regresso,
sou rio, mar, deserto,
um cravo de Abril, uma canção de Brel,
sou tudo isso às portas do teu nome.

['O teu nome' de Manuel Alberto Valente in 'poesia reunida - o pouco que sobrou de quase nada']

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As fotografias foram feitas no Ginjal

Jacques Brel interpreta Quand on n'a que l'amour

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03 novembro, 2015

Dum grito de loucura, de toda a matéria escura sufocada e contraída nasce o grito claro




De um sonho meu nasceu um dia um misterioso personagem. Inquieto, quieto, insubmisso, meigo, desatento, atento, amante de palavras, suave, forte, amante da poesia mais do que eu, os poemas rolando felizes na sua boca com a intimidade dos segredos muito bem escondidos, segredos revelados a quem conhece da cumplicidade o afago, a ternura. Assim o sonhei. Assim o descrevi em histórias, em palavras inventadas.

De onde nasceu essa pessoa não saberei dizer, talvez de labirintos longínquos, de escadas infinitas, de grutas loucas, roucas, de gritos insanos, de sombras frescas, de recantos acolhedores, de memórias perdidas, de devaneios inocentes, de promessas dissonantes. Sabia que essa pessoa não existia senão dentro da minha imaginação. Sabia. 

Até que um dia ela saíu das minhas mãos, materializou-se. As suas palavras passaram a ter som, o olhar sorriso, as mãos movimento, o calor corpo. Essa pessoa existe. Fala com poemas, traz luz às palavras, cor às imagens, raízes às recordações, asas ao desejo. Visita-me, dança comigo, abraça-me, sorri comigo, pega-me nas mãos, levanta-me no ar, deita-me no seu peito, beija-me devagar, com urgência. E eu fecho os olhos e vejo-o tão bem, tão bem, sinto-o, cheiro-o, está aqui junto a mim, ouço a sua respiração, sinto o calor do seu corpo, a macieza das suas mãos atentas, íntimas.

E já não sei se é sonho, se é despertar, se é gente, se é loucura, se é uma esperança insubmissa. E o que falo em segredo dentro de mim talvez seja já um grito, um grito azul, um grito claro que quer rasgar o futuro.


De escadas insubmissas
de fechaduras alerta
de chaves submersas
e roucos subterrâneos
onde a esperança enlouqueceu
de notas dissonantes
dum grito de loucura
de toda a matéria escura
sufocada e contraída
nasce o grito claro

['O grito claro' de António Ramos Rosa in Antologia Poética]

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As fotografias foram feitas no Ginjal.

Renée Fleming interpreta Après un rêve de Gabriel Faurè acompanhada de Jean-Yves Thibaudet ao piano

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27 outubro, 2015

Medo de a carícia despertar insuspeitos infernos





Devagar caminho sobre a água. Hesito. Tenho medo de não saber prosseguir. Perigosos são os caminhos das mulheres como eu. Arrisco, arrisco, atravesso abismos, desafio os deuses. Mas depois temo. Passo após passo, devagar, devagar. Talvez me deixe mergulhar. 

Abeiras-te devagar. Vens com o teu olhar. Em silêncio. Mostras-me o assombro das mãos. De longe foram estas as palavras que me chegaram: olho assombrada. Não percebo. Procuro. E depois chego a castelos abandonadas, galeras afundadas, lanças perdidas. E agora, enquanto caminho, receio que venhas de novo com o desencanto de quem viu fugir o seu destino.

Mas eis que te vejo sorrir. Mostras-me as tuas mãos. Dizes-me que não estão vazias, que as trazes cheias de sonhos. E eu abeiro-me de ti. Nossos serão, pois, todos os sonhos.

Dizes-me que não tenha medo, que não despertaremos infernos, que não incendiaremos almas alheias. Acredito. 

Fecho os olhos, deixo que me retires dos caminhos incertos das águas. Deixo que me seques, que me embales. Deixo que me faças sentir humana, frágil, mulher. Deixo que me beijes, deixo que incendeies a minha força. Deixo que as tuas carícias desfaçam a minha vontade, deixo que me tomes durante todos os instantes, para sempre, naquela breve eternidade em que tudo é tão pouco. E olho assombrada as tuas mãos cheias de luz.


Medo do amor
quando tudo é fome.

E onde tudo é tão pouco,
medo de a carícia
despertar insuspeitos infernos.

Medo de sermos
só eu e tu
a humanidade.

E morrermos de tanta eternidade.


['Medos' de Mia Couto in 'tradutor de chuvas']


[Com referência a 'Perdi os meus fantásticos castelos' de Florbela Espanca e a 'Apesar das ruínas' de Sophia]
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As fotografias mostram paredes pintadas no Ginjal

De Antonin Dvorak: Song to the Moon (de Rusalka) com Anna Netrebko 
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26 outubro, 2015

Dizer um nome é sempre uma heresia





Olho as minhas mãos sobre o teclado. Deslizam, independentes da minha vontade. Escolhem letras sem que eu as guie. Neste momento não existo, não tenho vontade, não tenho nome.

Os dedos procuram dizer o que eu não saberia nomear: porque escrevo, porque aqui estou, por quem quero ser lida. Não sei. Talvez as minhas mãos velozes o saibam, elas que soltam palavras no ar como quem solta pássaros que procuram o seu destino. 

Chegarão talvez intactas as minhas palavras e vocês que as recebem lê-las-ão sem espanto, conhecê-las-ão como minhas, palavras nuas, palavras sem dono. Saberão que foi uma mulher que, numa noite escura, de frio e chuva pesada, se desprendeu delas, uma mulher sem rosto, sem nome.

Tu que aí estás no meio de uma multidão imensa, tu que eu não conheço, de quem nada quero saber, de quem quero estar distante - tu também saberás que é para ti que escrevo, tu também invisível, tu uma presença silenciosa, sem nome, sem rasto, sem que nem um fio de luz vosso chegue até mim.

Poderia, eu sei, poderia brincar, seduzir só pelo prazer da conquista, pelo prazer do sorriso velado, poderia até dizer-te que quero que me espreites o decote, me levantes a saia, me digas segredos, me sussurres poemas, me surpreendas com olhares indecentes. Mas não digo, não é verdade.

Poderia, pelo menos, confessar-te que te quero a ouvir dizer o meu nome em surdina, o meu nome rolando gostoso na tua boca, sílaba a sílaba. Mas não digo, não é verdade.

Poderia confessar que quero dizer o teu nome, o teu nome escondido, dizer o teu nome, ciciar ao ouvido o teu nome, dizê-lo como quem faz um carinho, uma suave e lenta carícia, o teu nome beijado pelos meus lábios. Mas não digo, não é verdade.

Não. Sou apenas um vulto secreto, uma mulher invisível que atravessa a densa noite de chuva, uma mulher sem nome, que escreve para pessoas sem nome. 

Sei que me compreendes: dizer o teu nome, dizeres o meu nome - que heresia seria; dizer um nome é sempre uma heresia, sabes bem. Não. Não o faremos.


Não direi o teu nome para
nós evidente pois estás no centro
da multidão que fomos quando a outros
disputámos o óxido do ouro

Não direi o teu nome como outrora pedi
que não dissesse o meu nome quem tinha
o poder de o dizer em pleno dia:
dizer um nome é sempre uma heresia


['Dizer um nome' de Gastão Cruz in Óxido]
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As fotografias mostram paredes degradadas e graffitadas no Ginjal.
A música é uma canção tradicional russa: Sinos nocturnos

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16 outubro, 2015

Há um ponto sem chão nem ponte em que só é preciso abrir os braços e voar.






Com um olhar serás capaz de me tirar o chão. Aprende isso. Com um olhar e um sorriso serás capaz de me tirar o controlo, o raciocínio, tirar-me de mim, com um olhar serás capaz de me deixar disponível para ti. Aprende isso para que percebas que não o deves fazer.

Estou a avisar-te. Prolonga o olhar, prolonga, deixa-te estar assim, parado, a olhar para mim e ver-me-ás sem força, sem armas, sem saber o que fazer, sem saber o que dizer. Olha para mim dessa forma, olha, e sentirás que estás a despir-me, a deixar-me vulnerável, à tua mercê. Por isso, não o faças. O risco é maior do que pensas. Aviso-te: não o faças.

Olha-me, olha-me assim e depois não te queixes se um dia eu te cair nos braços. Olha-me, olha-me. Olha-me assim, de longe, um sorriso clandestino, um sorriso de quem se aventura por terrenos proibidos - sabes que são proibidos, sabes, sabes que sim. 

Olha-me assim se me queres descobrir. Olha-me, sente-me, toca-me a pele, a alma. Olha-me. Olha-me como se estivesses de olhos fechados, apenas a imaginar-me. Olha-me, olha-me nua nos teus braços, as pontes abolidas. Mas depois não te queixes. Avisei-te. Olha-me assim, despudorado, olha-me assim e depois não te admires quando me vires a voar. A voar, a voar. A voar para me aproximar mais e mais e mais de ti. Olha-me, olha-me, mas não te admires quando me sentires alojada no teu coração.



Há um tempo para estar só
há um tempo para estar nu
há um tempo que falta para ser
o bastante uma coisa e outra
há uma ponte em direcção ao tu

que é necessário atravessar e que
é necessário, coragem, minar
e há um ponto sem chão
nem ponte em que só é preciso
abrir os braços e voar.

.....

O poema pertence a O Quarto Azul e outros poemas de Rui Caeiro

Viajei ao som dos coros da Igreja Ortodoxa Russa

As fotografias foram feitas no Ginjal
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14 outubro, 2015

Tão linda que só espalha sofrimento, tão cheia de pudor que vive nua





Há dias assim, sem lua, o céu escuro, a noite cansada, as palavras que fogem para lugares inalcansáveis. Estás aí, eu sei, estás aí e talvez esperes por mim. Estás aí e eu sinto-te, perto, esperando um sinal, uma palavra perdida, escondida, invisível. Mas o céu emudeceu, o rio está envolto em negrume, as minhas mãos deslizam pelas palavras que voam com uma melancolia nova. Voam de mim, as palavras. Voam, sabes?

Abro a janela, tento que a aragem húmida me traga uma nota de música, um choro, um riso, qualquer coisa. Mas não, é silêncio o que vejo desta janela escura, um silêncio pesado. 

Olho a ausência à minha frente, o escuro, e, porque tenho vontade de voar, imagino que chegas até mim e, em segredo, me dizes:

Essa mulher, flor de melancolia
Que se ri dos meus pálidos receios
A única entre todas a quem dei
Os carinhos que nunca a outra daria.

Fecho os olhos, leio as sombras que escondes no meio da luz, recolho flores, acaricio as cores que espalhas no espaço infinito. Fecho os olhos e penso em ti. Fecho os olhos, e tu tão longe, tão longe, tão longe. Existes? Existes? Estás aí?

Sonharás, às vezes, comigo, inventarás abraços nunca dados, beijos proibidos, inventados, momentos loucos que nunca foram nossos? Dirás, como se dissesses a verdade, memórias que nunca nos pertenceram? Assim:

Essa mulher que se arremessa, fria
E lúbrica aos meus braços, e nos seios
Me arrebata e me beija e balbucia
Versos, votos de amor e nomes feios.

Lamentarás um dia ter sonhado comigo? Ou não? Tu que me conheces tão bem como se me conhecesses, dirás que sou como a lua, longínqua, nua? E que só espalho sofrimento? Dirás isso, acusando-me? Ou desculpando-me? Dizes isso só para ti? Dizes, como num lamento:

Uma mulher que é como a própria Lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua

Ah, não me respondas. Deixa-te estar em silêncio, preso à sombra do silêncio. Sabes, nada posso fazer. Gostava de, para ti ser uma estrela, gostava de encher de luz a tua vida, gostava de te transportar sobre flores e versos. Mas nada posso fazer, sou apenas uma mulher que vive nua, uma mulher feita de música, luar e sentimento.


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O título deste post e o excerto final pertence ao poema pertencem ao Soneto do Corifeu de Vinicius de Moraes que é lido por Rafael Mendes. As outras duas estrofes pertencem ao Soneto da Devoção também de Vinicius.

As fotografias foram feitas, este fim de semana, no Ginjal.
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02 outubro, 2015

Um dia prometeste deixar no estuário da nossa cama






Não pensámos, não, que fosse eterno. Por vezes fingíamos acreditar mas ríamo-nos logo a seguir para que ficasse claro que sabíamos que um dia terminaria. O sabermos que era efémero dava mais valor ao que tínhamos. E, enquanto o tínhamos, sentíamos que era eterno mas não o dizíamos, não queríamos que o nosso amor se tornasse risível. 
Tecias sedas com os meus cabelos entre as tuas mãos e dizias vou tecer um manto invisível para nos cobrirmos quando dormirmos na beira do rio e eu deixava que o calor das tuas mãos, desfiando-me lentamente, me transportasse leito fora como se já pelo rio o meu corpo navegasse, junto ao teu, junto ao teu. 
Tanto que eu gostava, na cama, de sentir a pele do teu corpo junto à pele do meu corpo disponível, teu, teu. 
As tuas mãos percorriam os contornos do meu corpo, tão macio, dizias tu, e eu gostava de te ouvir, segredando-me convites indecentes ao ouvido e isso era um segredo teu, só teu, só teu. 
As minhas pernas enleavam-se ainda mais nas tuas, e eu deixava que o teu corpo respirasse sobre o meu, navio suave deslizando por um rio vibrante, água e fogo, flores e vento, pássaros e sonhos, amor meu, amor meu.
Lembras-te? 

Lembras-te dos nomes que usavas para dizer o meu nome? Dos nomes que usavas para dizer o teu amor? Dos nomes que usavas para dizer o teu desejo, o meu desejo? Lembras-te?

Lembras-te de como me abraçavas, a tua boca escondida pelo meu cabelo, e tu, indecoroso amor meu, dizendo maldades, inquietando-me? E do rio, lá em baixo, que não sabia refrescar o calor do meu corpo, lembras-te?

E depois um dia foste-te. Não te despediste. 

Nunca mais te vi. Nada sei de ti. Nem sei se ainda sei o teu nome. Nem sei se ainda sei o meu nome. Nem sei se ainda existo. Sem ti, nem sei se alguma vez existi.

Fecho os olhos e tento recordar-me do nome que dizias quando dizias o meu nome. Mas o que ouço é apenas uma voz branca, sem palavras. Uma voz vazia, uma voz vazia desfiando memórias sem olhos, perdidas na cama que era nossa e que hoje está vazia.

Meu amor que te amo tanto, não voltes para mim, deixa-te estar no recanto mais profundo do meu sangue, lá onde não poderás voltar para ti. Amor meu, amor meu.




que foi que    de repente     eu disse
para que começasses a dar outros nomes ao que
pensávamos ser eterno    e habitar no
mais profundo recanto do nosso sangue

ouve-me   ouve-me   e dá depois o
nome que quiseres às mãos que um dia
prometeste deixar no estuário
da nossa cama

onde hoje apenas
se desenha o côncavo lugar do que
ardilosamente roubaste na partida


[de Alice Vieira in Os armários da noite]

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Yiruma interpreta Dream

As fotografias foram feitas no Ginjal

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22 setembro, 2015

Escuta homem que vens






Escuta homem que vens. Não sabes, porque não podes saber, porque eu não te disse, porque nunca te direi, mas sabe, homem que vens, que tenho ainda nas minhas mãos o cheiro que inventei para as tuas, e nos meus olhos o teu olhar que me quer olhar com infinita doçura e nos meus lábios o sorriso que um dia sonhaste ver e o sabor da tua pele que não saboreei.

Escondo-me de ti, de mim, dos sonhos, das asas, da luz, dos ventos, dos segredos, de tudo. Escondo-me, enrolo-me, encolho-me dos recantos, calo-me, esqueço-me. Num buraco escuro, no recesso da raiz de uma árvore esquecida, num desvão de uma escada clandestina, na intimidade das folhas de um livro que tacteaste, por aí vagueio eu, bicho com medo, invisível, quase perigoso. Não me encontrarás. Mesmo que me encontres, não serei eu.

Sou uma mulher selvagem, homem que vens, sou uma mulher sem piedade, sem remorsos, uma mulher danada que esquece quem a ama, que ignora lamentos e finge não ver as palavras que desenhas para que os meus olhos se lembrem de ti, uma mulher que apaga os rasgos que lhe abriste na  pele, no coração.

Os lençóis conservarão talvez as formas que nunca lá deixaste e, se eu encostar o ouvido ao fundo do teu coração que sinto bater aqui junto ao meu, sentirei a tua respiração gentil e poderia até adivinhar como é a pequena morte que conhecerias se visitasses o meu corpo. Sinto-te aí, sinto-te, ouço a tua respiração, vejo os teus olhos, sinto-te, sinto-te. A tua pele, o teu corpo - sinto, sinto. O calor do teu corpo, o cheiro do teu hálito. Aqui, junto a mim. Sinto.

Mas eu sou uma mulher impiedosa, danada, uma mulher que vive no fundo do mar e desconhece a brandura das estepes, que desconhece os concâvos do macio das tuas mãos, a curva branda do teu ombro que me aguarda. Desconheço-te, ignoro-te, tapo a recordação de ti. Faço-me de mil silêncios, fundo-me com as paredes, refugio-me onde não me vejas, não me lembres, não me queiras. E esqueço-te, ignoro-te. Vives no fundo mais esquecido de mim. Os meus uivos não chegam até ao lugar escuro onde te escondi.

Podes soltar palavras no ar, semear pássaros pelos ventos, trepar nu aos telhados, descer ao fundo do mar, amar-me com a carne, sem virtude, ser gato sem dono, cardume de peixes, raiz ou flor. Podes. Mas de mim, mulher impiedosa, mulher selvagem, de braços vegetais como ramos largos imersos nas águas, de asas aflitas como remos querendo fazer-se ao mar, de mim, mulher sem nome, nada poderás ter. 

Talvez apenas cânticos, lamentos, murmúrios, gemidos, soluços, lágrimas, risos, gritos, abraços infinitos, beijos inventados, palavras perfumadas como mel, coisas que de nada valem, que se perdem no ar, no tempo, nos silêncios tristes que habitam o meu peito.

Escuta homem que vens. Não queiras esta mulher selvagem.




Os lençóis conservaram
as formas dos cardumes dizem
que se encostares o ouvido ao fundo
terás a cadência vegetal das mãos.
Que uma estepe se abre
côncava
de artes lentas nesse lugar
de morte certa.

Escuta homem que vens -
os remos à solta fazem parte
da biologia das águas.



['Cântico das abundâncias' de Catarina Nunes de Almeida in Bailias]

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Chung Kyung-Wha interpreta o Concerto para Violino (Mov.2) de Antonín Dvořák

As fotografias foram feitas no Ginjal durante o último fim de semana

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01 setembro, 2015

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha, a essa hora dos mágicos cansaços, quando a noite de manso se avizinha, e me prendesses toda nos teus braços


A sul perdem-se-me os pensamentos: voam nas asas das gaivotas que daqui partem desalmadas, livres, sem raízes, procurando o fim dos tempos, o azul mais azul, o mar sem fim para onde fogem as almas sem rumo, sem dono, sem destino.

Descanso de sonhos, de mil lutas, de luzes que cegam, de asas que voam deixando o corpo para trás, descanso de abraços sonhados, de poemas dedicados, de beijos inventados, descanso de palavras desatinadas, de palavras aladas. E de mil trabalhos, de um tempo que corre, que escorre, que se esvai. descanso de não ter janelas, de não ter um ar com cheiro a relva ou a laranjeiras, de não pisar a terra, de não caminhar todos os dias sobre as águas. E de não ter borboletas e pássaros voando junto a mim, de não ter flores a nascer-me do cabelo nem risos a sair-me do coração como músicas de crianças.

Mas não descanso de quem me ama, de quem vive guardado no meu coração, de quem me deseja e que me tem debaixo da sua pele, dos olhares que me olham com ternura e volúpia, das mãos que me procuram, das palavras que me são ditas com descarado amor, de tudo, de tudo, que nunca poderei soltar no ar nem deixar ir nas asas das gaivotas perdidas.

A sul eu não me perco de ti, a sul eu guardo-me para ti, meu amor. 

E, agora que tombam sobre nós estes mágicos cansaços e que a noite se avizinha, prende-me nos teus braços, amor, aperta-me nos teus quentes abraços e deixa que o azul destes mares do sul nos embale, amor, deixa, deixa. E fecha os olhos, amor, e faz-me sonhar.






Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...


['Se tu viesses ver-me de Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"]

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Pedro Abrunhosa interpreta Eu não sei quem te perdeu

As fotografias foram feitas em Lagos 

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30 maio, 2015

O sempre é o pior dos nuncas








O veleiro afasta-se em direcção ao horizonte. Mais perto do casario, um outro veleiro, mais pequeno, branco, menineiro, parece percorrer um trilho de luz, parece querer ficar onde ficam os veleiros que gostam de habitar os corações dos seres amados.

O céu tem aquele tom dourado dos fins de dia quando o calor preenche o ar. Uma paz suave percorre a minha pele, entra devagar no meu coração. O tempo passa, a vida avança. Uns ficam, outros vão. A distância entre o que fica e o que vai um dia já não será distância, será ausência, esquecimento. O veleiro desliza e o silêncio de um fim de dia assim não é o prenúncio de saudade, é, sim, um adeus.

O azul do rio começa a adensar-se, começa a incorporar a noite, e a noite trará a solidão boa que acompanha os pássaros recolhidos, os gatos vadios, os amantes perdidos, as vozes silenciadas. O azul escurecerá ainda mais, as águas correrão calando murmúrios, afogando mágoas efémeras e segredos inúteis, lavando as almas dos espíritos que habitam as ruínas. 

Até que o veleiro desaparece, afasta-se das casas, afasta-se do pequeno veleiro branco. Terá passado para o lado de lá do horizonte, e nunca mais será visto cruzando este rio tão amado.

Depois o ouro recolhe ao coração das gaivotas livres e das mulheres sonhadoras, o céu escurece, a noite tomba devagar -- vem de longe, vem de trás das serras, e, aos poucos, abate-se sobre as casas, sobre as águas. A paz é, então, uma carícia, uma companhia amiga, e traz palavras envoltas em memórias boas, em devaneios felizes, em fragmentos inocentes, em pequenos nadas, em sorrisos inventados.

Fecho os olhos, deixo que o sono me envolva. O veleiro estará já muito longe. Até sempre. 




Ao partir,
disseram-me: voltarás sempre.

Parecia um consolo.

Era uma condenação.

Odeio o sempre.

Nos lugares
da vida carecidos,
o sempre é o pior dos nuncas.



['A Partida' de Mia Couta in 'vagas e lumes']

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Diana Krall interpreta Cry me a river e as fotografias foram feitas ontem ao fim do dia, rente ao Tejo e da janela desta sala

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24 março, 2015

Talvez seja apenas uma confidência


São instantes mas eu queria que fossem horas. E se são horas eu queria que fossem dias. E os dias somam-se aos dias e já são meses. E em cada instante desenhamos confidências, segredos inocentes, uma verdade tão nossa que parece ter nascido connosco, um pecado original que transportávamos sem o saber. Mas não é pecado, não, parece uma bênção, uma magia.

Afasto-me por vezes, quero ver as palavras de longe, quero ver se brilham como brilham quando em silêncio nos enunciamos secretas descobertas, memórias partilhadas, um registo de uma comunhão que parece imaginada.

E eu quero fechar a minha mão na tua para que feches nelas o nosso segredo, para que as palavras não voem, para que não fiquemos desamparados, sem as nossas asas que são comuns, sem os nossos sonhos que são os mesmos.

Fecha as tuas mãos nas minhas, envolve-me com um abraço, não deixes que os instantes se vão, prende as tuas palavras às minhas, e deixa-te ficar, sereno e alegre, olhando os meus olhos ou os meus sonhos. Guarda bem os nossos segredos. Nas nossas mãos. Meu querido.








Talvez seja apenas uma confidência. Sabemos
que cada vez mais é de nós que essas palavras
se afastam e assim se compreende melhor o sentido
que têm. Depois havemos de esquecê-las, para que se tornem
iguais a um segredo e se possa finalmente dizer
como tudo já cabe noutras mãos tranquilas e abertas.


[de Fernando Guimarães in Os caminhos habitados]




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Hayley Westenra interpreta Bachianas Brasileiras No. 5, Aria,  Heitor Villa-Lobos

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As fotografias foram feitas no Ginjal

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23 março, 2015

Teus dedos recolhendo gaivotas no raso voo sobre o meu peito.


Se eu pudesse abrir agora a janela e procurar na noite o lugar onde dorme o teu coração. Se eu pudesse levar as minhas palavras e deixá-las pousadas junto aos teus sonhos. Ah se eu pudesse dizer-te que as palavras não são só palavras, são bocados de mim. Ah se eu pudesse dizer-te que tenho medo que as palavras um dia se transformem em gente de verdade e queiram mergulhar no mar mais fundo, abraçadas a ti.

As gaivotas suspendem-se no ar e deixam que eu aprenda a voar e eu quero atravessar a noite, atravessar o tempo, sentar-me junto a ti, ver o rio, sentir a leveza do silêncio, e não esperar nada e não querer nada, apenas que agarres as minhas palavras e as tomes para ti, que agarres as minhas mãos e não as soltes mais, que te desfaças no meu olhar, em mim.

Não quero nada de mais. Não quero grutas, labirintos, jardins, espelhos, bibliotecas, não quero livros, barcos, casas, não quero o céu, não quero o mar, não quero a luz nem a sombra, nem a música que se desprende das asas, das velas, dos ventos. Quero apenas um instante, o preciso instante em que o teu coração pousaria junto ao meu. Para sempre, mesmo que apenas por um instante.

Mas sei que isso é querer demais porque esse instante não existe, esse instante está preso no fundo do mar e eu não sei onde, o mar é tão imenso, ah tão imenso, ou talvez esteja numa casa inventada, perdida, algures a sul onde o mar se desfaz no azul do céu.

Ah meu querido, como eu queria esse inexistente instante. 


Guincho* sobre o Tejo junto ao Ginjal com Lisboa ao fundo
(*que eu pensava que era uma gaivota diferente e que, em comentário abaixo, aprendi que não)



Não quero o mar.

Quero o instante
em que o oceano inteiro
se enrosca numa só onda.

Não quero rios.

Um redondo de lágrima me basta:
teus dedos
recolhendo gaivotas
no raso voo sobre o meu peito.

Eu quero um deserto.
Mas de vastidão mindinha.

Desses que cabem num grão de areia.



[Exíguos anseios de Mia Couto in 'Vagas e Lumes']


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A música é Nana de Manuel de Falla, Violencelo: Javier Albarés e guitarra:Marisa Gómez


12 março, 2015

Amanheceu a minha vida no teu rosto de uma doçura intensa e tão suave







Caminhava e não sabia que era na tua direcção que caminhava. Nem sequer sabia de ti. E, no entanto, sem que o soubesses, era também na minha direcção que caminhavas. 

Eu julgava que era uma mulher normal embora soubesse das minhas asas e das palavras que voam em minha volta. Mas agora sei que não sou normal. As asas cresceram muito e quase não me pertencem e o chão parece que está prestes a desaparecer.

De ti sei que te sentas com palavras junto aos braços e que a cabeça está lá bem alto, onde as nuvens transportam a água mais limpa, os sonhos mais imateriais e puros, onde a luz é doce como um sorriso. E que tens asas também.

E caminhamos na direcção um do outro. Por vezes, as palavras de um e do outro voam, perdem-se de nós, brincam, buscam-se, encontram-se e beijam-se sem que as possamos controlar, são pássaros livres, tão livres, tão livres como talvez gostássemos de ser.

Enquanto assim caminhamos, sem sabermos bem em que ponto pararemos, os pássaros brincam também, imitam-nos, riem e dizem as palavras de David:

Nós temos cinco sentidos: 
são dois pares e meio de asas. 

- Como quereis o equilíbrio?

e nós, de longe, ouvimos essas vozes e já nem sabemos se são os pássaros, se os anjos, se somos nós que as sonhamos.

Caminhamos. Não sei se estamos longe, se algum dia nos encontraremos, nada sei. Sei apenas que é na direcção um do outro que caminhamos. Levados nas asas dos sonhos, levados por um estranho e inconfessado desejo, por abraços que inventamos, por beijos que tememos querer, vamos voando, caminhando pelos céus.

E então as palavras de ambos, feitas pássaros tresloucados, ardentes de um amor que sabem não poder ser seu, dizem, como se sonhassem,

Amanheceu a minha vida no teu rosto
De uma doçura intensa e tão suave
Como se um divino fundo nele brilhasse
Eu era o que nascia soberanamente leve
E encontrava na limpideza centro do equilíbrio
Só em ti cheguei amanhecendo na minha madurez
Entrei no templo em que a luz latente era a secreta sombra
Foste sonhada por meus olhos e minha mãos
Por minha pele e por meu sangue
Se o dia tem este fulgor inteiro é porque existes
E é porque existes que se levanta o mundo
Em quotidianos prodígios
Em que ao fundo brilha o horizonte certo.


E eu fecho os olhos: sim, deixa que as palavras sonhem, deixa. Deixa que elas nos digam que talvez um dia entremos num templo só nosso e nos descubramos, as mãos impacientes, inocentes, a pele e o sangue em chama, e os olhos despidos, prontos para a nudez que brilhará, secreta, em dias só nossos, plenos de prodígios também só nossos.



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O primeiro poema é de David Mourão-Ferreira, o segundo é de António Ramos Rosa, Lilac Wine é interpretado por Nina Simone e as fotografias são, como tantas vezes, feitas no Ginjal.

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04 março, 2015

o sonho da matéria com que haverei de lhe tocar a pele dizendo o seu nome






agora a mulher estava no plural
a mulher era potável
a mulher escrevia o missal do seu corpo

um dia o anjo disse - vai à fábula -

então a mulher escolheu escrupulosamente o seu pé esquerdo 
e foi




E então mergulho no azul em busca do teu nome. Quem és? Não sei nem o teu nome.

Diz-me da tua pele, diz-me como brilham os teus olhos. Diz-me de que sombras te escondes ou diz-me a que luz se desnuda a tua alma. Diz-me apenas palavras assim, soltas, livres, palavras sem futuro.

Não quero saber mais, quero apenas adivinhar como bate o teu coração ou a forma como fechas os olhos quando sabes as palavras que nascem de mim. Mulher plural, potável, mulher que se desprende do equilíbrio para se lançar no azul mais limpo, na maresia mais suave, assim sou eu. 

E, sabendo-me assim, meio mulher, meio pássaro, um anjo vem e diz que sobre as águas eu me deite e eu deito-me, e ele diz que sobre mim quer escrever palavras azuis e eu digo que o meu corpo já tem desenhadas as linhas que esperam a sua caligrafia, e ele hesita e diz-me que é de temor que o seu coração bate e eu digo-lhe que escreva todo o silêncio que transporta no seu peito e ele escreve, e eu adivinho palavras inocentes como água, luz, sonho, e depois o anjo e eu olhamos o sol e mergulhamos na luz, numa doce vertigem, e depois vejo que o dia se está a afogar no rio e que tenho que ir e, então, as palavras desprendem-se do meu corpo, e voam e voam e sobre mim começam a tombar fragmentos de luz, lágrimas, sonhos que, mal se desprendem de nós, logo começam a esfumar-se. 

Quando tocar a tua pele direi o teu nome, digo-lhe eu enquanto me dissolvo no azul do céu. E voo. E vou.


Não recordo esse azul, mas sei
que ele se alia ao azul imaginado
pela acústica impressão:

desprende-se a sua voz, bate
no meu rosto, retoma a mais densa
compreensão, o sonho da matéria

com que haverei de lhe tocar a pele
dizendo o seu nome.

......   ......   ......


A música é The Tale of Sweet Sir Galahad  de e por Joan Baez

O primeiro poema é de Catarina Nunes de Almeida in Marsupial da editora Mariposa Azual

O segundo poema é O azul de Wallace Stevens de Luís Quintais in Depois da Música da editora Tinta da China

As fotografias foram feitas no fim de semana e o rio é o Tejo.

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