Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

26 outubro, 2015

Dizer um nome é sempre uma heresia





Olho as minhas mãos sobre o teclado. Deslizam, independentes da minha vontade. Escolhem letras sem que eu as guie. Neste momento não existo, não tenho vontade, não tenho nome.

Os dedos procuram dizer o que eu não saberia nomear: porque escrevo, porque aqui estou, por quem quero ser lida. Não sei. Talvez as minhas mãos velozes o saibam, elas que soltam palavras no ar como quem solta pássaros que procuram o seu destino. 

Chegarão talvez intactas as minhas palavras e vocês que as recebem lê-las-ão sem espanto, conhecê-las-ão como minhas, palavras nuas, palavras sem dono. Saberão que foi uma mulher que, numa noite escura, de frio e chuva pesada, se desprendeu delas, uma mulher sem rosto, sem nome.

Tu que aí estás no meio de uma multidão imensa, tu que eu não conheço, de quem nada quero saber, de quem quero estar distante - tu também saberás que é para ti que escrevo, tu também invisível, tu uma presença silenciosa, sem nome, sem rasto, sem que nem um fio de luz vosso chegue até mim.

Poderia, eu sei, poderia brincar, seduzir só pelo prazer da conquista, pelo prazer do sorriso velado, poderia até dizer-te que quero que me espreites o decote, me levantes a saia, me digas segredos, me sussurres poemas, me surpreendas com olhares indecentes. Mas não digo, não é verdade.

Poderia, pelo menos, confessar-te que te quero a ouvir dizer o meu nome em surdina, o meu nome rolando gostoso na tua boca, sílaba a sílaba. Mas não digo, não é verdade.

Poderia confessar que quero dizer o teu nome, o teu nome escondido, dizer o teu nome, ciciar ao ouvido o teu nome, dizê-lo como quem faz um carinho, uma suave e lenta carícia, o teu nome beijado pelos meus lábios. Mas não digo, não é verdade.

Não. Sou apenas um vulto secreto, uma mulher invisível que atravessa a densa noite de chuva, uma mulher sem nome, que escreve para pessoas sem nome. 

Sei que me compreendes: dizer o teu nome, dizeres o meu nome - que heresia seria; dizer um nome é sempre uma heresia, sabes bem. Não. Não o faremos.


Não direi o teu nome para
nós evidente pois estás no centro
da multidão que fomos quando a outros
disputámos o óxido do ouro

Não direi o teu nome como outrora pedi
que não dissesse o meu nome quem tinha
o poder de o dizer em pleno dia:
dizer um nome é sempre uma heresia


['Dizer um nome' de Gastão Cruz in Óxido]
..

As fotografias mostram paredes degradadas e graffitadas no Ginjal.
A música é uma canção tradicional russa: Sinos nocturnos

...

3 comentários:

  1. Respostas
    1. Olá Fernando,

      Pois não é que a música tinha desaparecido? Não sei como... Mas já a reconduzi ao seu sítio.

      Obrigada!

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    2. Ah, que maravilha! Muito obrigado, "mulher sem nome" que disse o meu nome. O Gastão Cruz é também uma presença sempre bem-vinda.

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