Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

23 março, 2015

Teus dedos recolhendo gaivotas no raso voo sobre o meu peito.


Se eu pudesse abrir agora a janela e procurar na noite o lugar onde dorme o teu coração. Se eu pudesse levar as minhas palavras e deixá-las pousadas junto aos teus sonhos. Ah se eu pudesse dizer-te que as palavras não são só palavras, são bocados de mim. Ah se eu pudesse dizer-te que tenho medo que as palavras um dia se transformem em gente de verdade e queiram mergulhar no mar mais fundo, abraçadas a ti.

As gaivotas suspendem-se no ar e deixam que eu aprenda a voar e eu quero atravessar a noite, atravessar o tempo, sentar-me junto a ti, ver o rio, sentir a leveza do silêncio, e não esperar nada e não querer nada, apenas que agarres as minhas palavras e as tomes para ti, que agarres as minhas mãos e não as soltes mais, que te desfaças no meu olhar, em mim.

Não quero nada de mais. Não quero grutas, labirintos, jardins, espelhos, bibliotecas, não quero livros, barcos, casas, não quero o céu, não quero o mar, não quero a luz nem a sombra, nem a música que se desprende das asas, das velas, dos ventos. Quero apenas um instante, o preciso instante em que o teu coração pousaria junto ao meu. Para sempre, mesmo que apenas por um instante.

Mas sei que isso é querer demais porque esse instante não existe, esse instante está preso no fundo do mar e eu não sei onde, o mar é tão imenso, ah tão imenso, ou talvez esteja numa casa inventada, perdida, algures a sul onde o mar se desfaz no azul do céu.

Ah meu querido, como eu queria esse inexistente instante. 


Guincho* sobre o Tejo junto ao Ginjal com Lisboa ao fundo
(*que eu pensava que era uma gaivota diferente e que, em comentário abaixo, aprendi que não)



Não quero o mar.

Quero o instante
em que o oceano inteiro
se enrosca numa só onda.

Não quero rios.

Um redondo de lágrima me basta:
teus dedos
recolhendo gaivotas
no raso voo sobre o meu peito.

Eu quero um deserto.
Mas de vastidão mindinha.

Desses que cabem num grão de areia.



[Exíguos anseios de Mia Couto in 'Vagas e Lumes']


______


A música é Nana de Manuel de Falla, Violencelo: Javier Albarés e guitarra:Marisa Gómez


6 comentários:

  1. METADE

    Que a força do medo que tenho
    Não me impeça de ver o que anseio;
    Que a morte de tudo em que acredito
    Não me tape os ouvidos e a boca;
    Porque metade de mim é o que eu grito,
    Mas a outra metade é silêncio...

    Que a música que eu ouço ao longe
    Seja linda, ainda que tristeza;
    Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
    Mesmo que distante;
    Porque metade de mim é partida
    Mas a outra metade é saudade...

    Que as palavras que eu falo
    Não sejam ouvidas como prece
    E nem repetidas com fervor,
    Apenas respeitadas como a única coisa que resta
    A um homem inundado de sentimentos;
    Porque metade de mim é o que ouço
    Mas a outra metade é o que calo...

    Que essa minha vontade de ir embora
    Se transforme na calma e na paz que eu mereço;
    E que essa tensão que me corrói por dentro
    Seja um dia recompensada;
    Porque metade de mim é o que penso
    Mas a outra metade é um vulcão...

    Que o medo da solidão se afaste
    E que o convívio comigo mesmo
    Se torne ao menos suportável;
    Que o espelho reflita em meu rosto
    Um doce sorriso que me lembro ter dado na infância;
    Porque metade de mim é a lembrança do que fui,
    A outra metade eu não sei...

    Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
    para me fazer aquietar o espírito
    E que o teu silêncio me fale cada vez mais;
    Porque metade de mim é abrigo
    Mas a outra metade é cansaço...

    Que a arte nos aponte uma resposta
    Mesmo que ela não saiba
    E que ninguém a tente complicar
    Porque é preciso simplicidade para faze-la florescer;
    Porque metade de mim é platéia
    E a outra metade é canção...

    E que a minha loucura seja perdoada
    Porque metade de mim é amor
    E a outra metade... também.
    Oswaldo Montenegro

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  2. É tudo belo neste post. O texto de introdução, a música de Falla, o poema do Mia e a "resposta" de Rosa Pinto. Há apenas uma incorreção, que vou perdoar em nome da beleza e da harmonia. A ave da fotografia não é uma gaivota, mas sim um guincho. É uma ave aquática que passa o inverno entre nós e na primavera parte para o norte da Europa. Deve estar já de malas aviadas para se ir embora. Mas façamos de conta que é uma gaivota.

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    Respostas
    1. Bom dia, Fernando,

      Já emendei na legenda fotografia. Eu achava sempre que aquelas 'gaivotas' eram diferentes das outras mas, pronto, na minha ignorância, achava que era porque eram diferentes... Andam sempre com as outras, portam-se como as outras mas intrigavam-me. Afinal cá está: não são gaivotas. Estou a escrever e a sorrir com a minha ignorância. De facto, poderia ter suspeitado antes...

      Obrigada, Fernando. Aprendo sempre consigo!

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    2. Aqui no Porto, o Parque da Cidade tem muitos guinchos no inverno e há uma pequena descrição deles e de outras aves, em cartazes existentes no parque. Por isso é que sei.

      Por outro lado, talvez a Praia do Guincho, em Cascais, tenha este nome por causa destas aves. Não será certamente por causa de algum guindaste...

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    3. Até soltei uma gargalhada com essa do guindaste!

      De facto, é bem capaz de vir deste pássaro o nome da praia, faz sentido.

      E já estou a começar o dia a rir, o que é a melhor maneira de começar o dia. Obrigada.

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  3. Vejam Bem
    Zeca Afonso
    Vejam bem
    que não há só gaivotas em terra
    quando um homem se põe a pensar
    quando um homem se põe a pensar

    Quem lá vem
    dorme à noite ao relento na areia
    dorme à noite ao relento no mar
    dorme à noite ao relento no mar

    E se houver
    uma praça de gente madura
    e uma estátua
    e uma estátua de de febre a arder

    Anda alguém
    pela noite de breu à procura
    e não há quem lhe queira valer
    e não há quem lhe queira valer

    Vejam bem
    daquele homem a fraca figura
    desbravando os caminhos do pão
    desbravando os caminhos do pão

    E se houver
    uma praça de gente madura
    ninguém vem levantá-lo do chão
    ninguém vem levantá-lo do chão

    Vejam bem
    que não há só gaivotas em terra
    quando um homem
    quando um homem se põe a pensar

    Quem lá vem
    dorme à noite ao relento na areia
    dorme à noite ao relento no mar
    dorme à noite ao relento no mar

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