Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

03 novembro, 2015

Dum grito de loucura, de toda a matéria escura sufocada e contraída nasce o grito claro




De um sonho meu nasceu um dia um misterioso personagem. Inquieto, quieto, insubmisso, meigo, desatento, atento, amante de palavras, suave, forte, amante da poesia mais do que eu, os poemas rolando felizes na sua boca com a intimidade dos segredos muito bem escondidos, segredos revelados a quem conhece da cumplicidade o afago, a ternura. Assim o sonhei. Assim o descrevi em histórias, em palavras inventadas.

De onde nasceu essa pessoa não saberei dizer, talvez de labirintos longínquos, de escadas infinitas, de grutas loucas, roucas, de gritos insanos, de sombras frescas, de recantos acolhedores, de memórias perdidas, de devaneios inocentes, de promessas dissonantes. Sabia que essa pessoa não existia senão dentro da minha imaginação. Sabia. 

Até que um dia ela saíu das minhas mãos, materializou-se. As suas palavras passaram a ter som, o olhar sorriso, as mãos movimento, o calor corpo. Essa pessoa existe. Fala com poemas, traz luz às palavras, cor às imagens, raízes às recordações, asas ao desejo. Visita-me, dança comigo, abraça-me, sorri comigo, pega-me nas mãos, levanta-me no ar, deita-me no seu peito, beija-me devagar, com urgência. E eu fecho os olhos e vejo-o tão bem, tão bem, sinto-o, cheiro-o, está aqui junto a mim, ouço a sua respiração, sinto o calor do seu corpo, a macieza das suas mãos atentas, íntimas.

E já não sei se é sonho, se é despertar, se é gente, se é loucura, se é uma esperança insubmissa. E o que falo em segredo dentro de mim talvez seja já um grito, um grito azul, um grito claro que quer rasgar o futuro.


De escadas insubmissas
de fechaduras alerta
de chaves submersas
e roucos subterrâneos
onde a esperança enlouqueceu
de notas dissonantes
dum grito de loucura
de toda a matéria escura
sufocada e contraída
nasce o grito claro

['O grito claro' de António Ramos Rosa in Antologia Poética]

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As fotografias foram feitas no Ginjal.

Renée Fleming interpreta Après un rêve de Gabriel Faurè acompanhada de Jean-Yves Thibaudet ao piano

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