Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

12 março, 2015

Amanheceu a minha vida no teu rosto de uma doçura intensa e tão suave







Caminhava e não sabia que era na tua direcção que caminhava. Nem sequer sabia de ti. E, no entanto, sem que o soubesses, era também na minha direcção que caminhavas. 

Eu julgava que era uma mulher normal embora soubesse das minhas asas e das palavras que voam em minha volta. Mas agora sei que não sou normal. As asas cresceram muito e quase não me pertencem e o chão parece que está prestes a desaparecer.

De ti sei que te sentas com palavras junto aos braços e que a cabeça está lá bem alto, onde as nuvens transportam a água mais limpa, os sonhos mais imateriais e puros, onde a luz é doce como um sorriso. E que tens asas também.

E caminhamos na direcção um do outro. Por vezes, as palavras de um e do outro voam, perdem-se de nós, brincam, buscam-se, encontram-se e beijam-se sem que as possamos controlar, são pássaros livres, tão livres, tão livres como talvez gostássemos de ser.

Enquanto assim caminhamos, sem sabermos bem em que ponto pararemos, os pássaros brincam também, imitam-nos, riem e dizem as palavras de David:

Nós temos cinco sentidos: 
são dois pares e meio de asas. 

- Como quereis o equilíbrio?

e nós, de longe, ouvimos essas vozes e já nem sabemos se são os pássaros, se os anjos, se somos nós que as sonhamos.

Caminhamos. Não sei se estamos longe, se algum dia nos encontraremos, nada sei. Sei apenas que é na direcção um do outro que caminhamos. Levados nas asas dos sonhos, levados por um estranho e inconfessado desejo, por abraços que inventamos, por beijos que tememos querer, vamos voando, caminhando pelos céus.

E então as palavras de ambos, feitas pássaros tresloucados, ardentes de um amor que sabem não poder ser seu, dizem, como se sonhassem,

Amanheceu a minha vida no teu rosto
De uma doçura intensa e tão suave
Como se um divino fundo nele brilhasse
Eu era o que nascia soberanamente leve
E encontrava na limpideza centro do equilíbrio
Só em ti cheguei amanhecendo na minha madurez
Entrei no templo em que a luz latente era a secreta sombra
Foste sonhada por meus olhos e minha mãos
Por minha pele e por meu sangue
Se o dia tem este fulgor inteiro é porque existes
E é porque existes que se levanta o mundo
Em quotidianos prodígios
Em que ao fundo brilha o horizonte certo.


E eu fecho os olhos: sim, deixa que as palavras sonhem, deixa. Deixa que elas nos digam que talvez um dia entremos num templo só nosso e nos descubramos, as mãos impacientes, inocentes, a pele e o sangue em chama, e os olhos despidos, prontos para a nudez que brilhará, secreta, em dias só nossos, plenos de prodígios também só nossos.



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O primeiro poema é de David Mourão-Ferreira, o segundo é de António Ramos Rosa, Lilac Wine é interpretado por Nina Simone e as fotografias são, como tantas vezes, feitas no Ginjal.

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