Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

26 março, 2014

'Das vantagens de ser bobo' segundo Clarice Lispector


No Jardim do Ginjal
(NB: A fotografia não tem a ver com o tema do texto)


O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando." 

Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia. 

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski. 

Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu. 

Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?" 

Bobo não reclama. Em compensação, como exclama! 

Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz. 

O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem. 

Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas! 

Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.



Das vantagens de ser bobo - Clarice Lispector por Aracy Balabanian



24 março, 2014

Difícil fotografar o silêncio


Um gato no Ginjal - em silêncio
O Tejo e Lisboa já ali


Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim num beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada mais na existência do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Vi um paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim cheguei a Nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakovski – seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.



Poema O Fotógrafo de Manoel de Barros dito por Eduardo Tornaghi


*

Encontrar o silêncio
quando os dias se rasgam
de gritos ácidos
e os ouvidos se enchem
de bandos loucos de palavras vãs.
Encontrar o silêncio
onde a Paz se acolhe
e o vazio se alaga
com sombras brancas.
Silêncio,
quando a angústia se esvai
e o olhar voa
como chama matutina.
Encontrar o Silêncio e morar nele
até que nos encontremos
e um sorriso se abra em nós.



[Silêncio de Joaquim Castilho num comentário abaixo]



20 março, 2014

O Jardim ('versão caseira' com muitos sorrisos, assobios, uivos e até uma mão na perna) - Tiago Bettencourt e Carolina Torres


Transcrevo da apresentação do vídeo escrita pelo próprio Tiago Bettencourt:

"Não sei se já alguém percebeu mas aqui no meu facebook, a cada 5 mil 'likes' tenho publicado vídeos caseiros com versões de canções minhas. Quando cheguei aos 35000 likes pensei fazer uma versão da canção 'O Jardim'. A versão que está no álbum tem um solo de trompete que em concerto é substituido por um solo de piano ou pelo meu assobio. Quando pensei nisto lembrei-me que tinha uma amiga que, de tão multifacetada, era dotada de um magnífico assobio. Liguei então à Carolina e perguntei se ela queria assobiar no meu video caseiro, ao que ela respondeu que se era para assobiar também ia cantar, e eu obviamente concordei. O que se segue foi o video possivel com a minha querida amiga Carolina Torres. Apenas alguns reparos:

1: este foi o take 3452 e estava a ficar demasiado escuro para continuarmos a filmar.

2: o solo de assobio está fenomenal.

3: a mão na perna é de incentivo para eu nao desistir de levar a canção até ao fim.

4: o uivo final... não tem qualquer justificação... mas tem um certo charme.

Aqui fica então mais um vídeo caseiro e estival para todos os que continuam connosco e que nos têm apoiado tanto nos concertos por Portugal fora. Obrigado do fundo do coração e obrigado à Carolina por ter aceite o convite. Boas férias para quem as tem e continuação de um bom verão para todos. Divirtam-se!"



Quero-te regar, minha flor
Quero cuidar de ti
Deixa-me entrar no jardim
Deixa-me voltar a dormir

Quero-te regar, minha flor
Dar-te de novo a paz que perdi
Quero desvendar a parte triste que há em ti
Deixa-me existir no espaço novo que encontraste em mim

Não vês que é de nós o jardim que se fez
Não vês que é para nós o jardim que nos faz olhar
Que este frio faz tremer quem fica
E faz voltar o que tens porque é meu

Não vês que é de nós o jardim que se fez
Não vês que é para nós o jardim que nos faz olhar
Que este rio faz crescer quem fica
E faz voltar o que tens porque é meu

Porque é meu
Porque é meu


*

19 março, 2014

'Deus não me deu o papel de Eva nem o de Maria porque também S. José me tinha corrido a pontapé' - "Adília Lopes, uma poeta que vale a pena a gente garimpar" - palavra de Eduardo Tornaghi


Quando aqui chego já a noite caíu há muito e venho sem ideias, a cabeça e o coração limpos. Esqueço os trabalhos do dia, preocupações profissionais ou familiares, esqueço até maleitas, tudo. Sou eu. Numa sala quase às escuras, numa mesa pouco iluminada, cercada por livros. Dir-se-ia que procuro o sossego ou que, a esta hora, gosto de sentir a leveza da solidão desejada. Mas não. Nem estou sozinha. O meu computador é muito mais que uma folha em branca: é uma janela que se abre para mundos que, de outra forma, eu jamais conheceria. O meu computador traz até aqui, à minha mesa, muita gente que fala coisas que eu gosto de ouvir.

Hoje lembrei-me de Adília Lopes. Há algo nesta mulher que me intriga. Quase acabou o curso de Física e a Física não é para todos, quem por lá perto tenha andado sabe o que aquilo é. Depois mudou para Literatura e pelos caminhos da literatura tem vindo a caminhar. Que padece de um certo tipo de psicose tem ela dito sem tabus e isso aparece muitas vezes nas suas palavras. Quando a ouço falar ou quando leio o que escreve fico sem perceber se ela fala ou escreve assim porque tem uma valente pancada, ou se se acha graça ou se é mesmo assim que ela é, infantil, irreverente, engraçada como uma menina grande e gorda.

Procurei por ela no YouTube e fui parar até um senhor fantástico: Eduardo Tornaghi. Ele diz poesia e prende-nos com a forma como diz e fala palavras engraçadas e, mais do que engraçadas, palavras muito oportunas como as que profere a propósito do mal-amado Acordo Ortográfico.

Vou acompanhar os seus vídeos. Abençoadas as pessoas que se dedicam à divulgação da bela língua portuguesa. Obrigada Eduardo Tornaghi.


Rosto de mulher impresso numa rocha no Jardim do Ginjal

Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter

Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas

Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)

A vida
é livro
e o livro
não é livre

Choro
chove
mas isto é
Verlaine

Ou:
um dia
tão bonito
e eu
não fornico


A solidão
de Adão
antes da criação
de Eva
devia ser
terrível
mas a minha
é bem pior
os homens
que escreveram
o Génesis
não pensaram
que Adão
em vez de saudar
Eva
com um grito de júbilo
a mandasse embora
com sete pedras na mão
mas eu acho
que foi
o que me aconteceu
temendo isso
Deus
não me deu
o papel de Eva
nem o de Maria
porque também
S. José
me tinha corrido
a pontapé


['Meteorológica', para o José Bernardino, de Adília Lopes]



Papo Poético - Eduardo Tornaghi



17 março, 2014

Ô pá, não quero outra vida...!


Sou admiradora de Adélia Prado e como. Gosto de a ler, mulher livre, desprendida, sem mão nas palavras, e gosto de a ver falando, inteligente, superior. Subterrânea. Alada. Irónica. Franca.

Volta e meia venho ver os vídeos em que aparece. Hoje coloco aqui uma entrevista muito completa, onde fala de assuntos variados. Abençoada Adélia. Adélia e Hélia. Quando a ouço penso em Hélia Correia. Líricas e etéreas mas, ao mesmo tempo, mulheres com as mãos na terra, atentas ao mundo. 

Ficava um dia inteiro a ouvi-la. Sábia. Feminina. Mulher de palavra e de palavras. Uma grande da língua portuguesa.








Transcrevo o texto de apresentação do vídeo no YouTube (Dez.2012): O Imagem da Palavra exibe programa especial de Natal com Adélia Prado. A escritora, que é um dos principais nomes da literatura nacional, conversou com Guga Barros sobre seu novo livro, A Duração do dia, seu processo criativo, a influência da religião em suas obras e a posição feminina na literatura.

*


03 março, 2014

Boa noite. Eu vou com as aves.


Cresci, mãe, cresci mas a menina que fui ainda existe dentro de mim. Tu sabes, mãe, que sou ainda a mesma. Tratas-me pelo mesmo nome com que me tratas desde que nasci. Tu e todas as pessoas que me conheceram então. Para ti e para todas elas sou ainda a mesma. E sou. É estranho porque já não teria idade para o ser. Mas sou. Alegre, curiosa, deslumbrada.Tomara que sempre assim me conserve, não é, mãe? Não quero ser velha, por muitos anos que já tenha e por muitos anos que ainda venha a ter. Não tenho feitio para me sentir e portar como uma velha.

E, quando me for, que vá voando, rindo, feliz, para desfrutar a liberdade dos grandes espaços. Com as aves. Como as aves.


Manhã de chuva no Ginjal - o Tejo picado e Lisboa envolta em névoa

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe 
Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos. 
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais. 
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz. 
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura. 
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos. 
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe! 
Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos; 
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura; 
ainda oiço a tua voz:
          Era uma vez uma princesa
          no meio de um laranjal... 
Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber, 
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas. 
Boa noite. Eu vou com as aves. 

Gaivota quase parada no ar no céu do Ginjal sobre o Tejo



['Poema à Mãe' de Eugénio de Andrade, in "Os Amantes Sem Dinheiro"]


Video realizado por Lauro Martins e Manuel Capitão, no âmbito da UC Imagem em Educação, Mestrado Tecnologia Educativa - Universidade do Minho 2012


Voz de Nuno Miguel Henriques


Música: Ave Maria - Gounod/Bach