Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

05 fevereiro, 2014

Com tantas guerras que travei já não sei fazer as pazes


Caminhando rente a um grande muro, numa avenida vazia, numa manhã sombria, chuvosa, quase arrastada por um vento frio, começo a ouvir vozes vindas da parede, choros, súplicas. Ninguém. Abrando, tento perceber se sonho, se testemunho qualquer situação inesperada. Suspiram, lamentam-se, as vozes parecem sair de dentro do muro. Acelero o passo, começo a sentir medo. Inquietação. Ouço passos, parecem acompanhar os meus. Não vejo ninguém. 

No céu as gaivotas gritam como loucas. Um gato foge assustado.

Então vejo uns olhos tristes. Olham-me. Pedem ajuda. 

Cobardemente afasto-me. Não sei lidar com situações extremas. Memórias, saudades, uma história estropiada, trabalho arrancado a quem queria trabalhar, tantas saudades a destas pessoas cuja vida ficou presa aos barcos que por aqui acostavam. Vidas cortadas ao meio.

Fujo, tanto abandona dói-me. Os muros estão desolados. Por aqui já não passa ninguém.


No silêncio das manhãs sombrias e chuvosas, nem só as vozes incertas e invisíveis, ou as tristezas de certos olhares nos inquietam. Os nossos medos parecem soltar-se de certas memórias que habitam o lodo dos muros desolados, e das pedras rotas e maceradas das avenidas vazias. 
Apetece-nos gritar com a loucura das gaivotas que nos miram e vigiam essas inquietações. A cobardia é em si mesma a situação extrema que nos arrasta, como gato que foge, para as memórias de tantas vidas cortadas ao meio.
Se estamos vazios, mais inquietações nos preenchem o espírito, ávido de respostas que não surgem na vertigem da caminhada.
Na guerra que travamos, entre ruínas de tantas batalhas, a inquietação é coisa para acontecer e não perceber. Entre tantas perguntas, em autêntico torvelinho, haveremos de chegar algures pois há sempre qualquer coisa que teremos que fazer.
Fugir da inquietação é abandonar a dor que já ninguém passará.

[Texto a itálico da autoria do Leitor dbo no comentário aqui abaixo]

Grafitti num muro junto à antiga Lisnave




A contas com o bem que tu me fazes
A contas com o mal por que passei
Com tantas guerras que travei
Já não sei fazer as pazes 
São flores aos milhões entre ruínas
Meu peito feito campo de batalha
Cada alvorada que me ensinas
Oiro em pó que o vento espalha 
Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda 
Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda 
Ensinas-me fazer tantas perguntas
Na volta das respostas que eu trazia
Quantas promessas eu faria
Se as cumprisse todas juntas 
Não largues esta mão no torvelinho
Pois falta sempre pouco para chegar
Eu não meti o barco ao mar
Pra ficar pelo caminho 
Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer
Qualquer coisa que eu devia resolver
Porquê, não sei
Mas sei
Que essa coisa é que é linda

['Inquietação' de José Mário Branco, interpretada por Camané e os Dead Combo; maravilhosa animação de Ryan Woodward]


2 comentários:

  1. Cara UJM, utilizando palavras vossas, direi:

    No silêncio das manhãs sombrias e chuvosas, nem só as vozes incertas e invisíveis, ou as tristezas de certos olhares nos inquietam. Os nossos medos parecem soltar-se de certas memórias que habitam o lodo dos muros desolados, e das pedras rotas e maceradas das avenidas vazias.
    Apetece-nos gritar com a loucura das gaivotas que nos miram e vigiam essas inquietações. A cobardia é em si mesma a situação extrema que nos arrasta, como gato que foge, para as memórias de tantas vidas cortadas ao meio.

    Se estamos vazios, mais inquietações nos preenchem o espírito, ávido de respostas que não surgem na vertigem da caminhada.
    Na guerra que travamos, entre ruínas de tantas batalhas, a inquietação é coisa para acontecer e não perceber. Entre tantas perguntas, em autêntico torvelinho, haveremos de chegar algures pois há sempre qualquer coisa que teremos que fazer.
    Fugir da inquietação é abandonar a dor que já ninguém passará.

    Felicidades para si e para os seus. Sem inquietações…

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá dbo,

      No lugar onde fiz aquela fotografia havia antes um movimento que não imagina. Trabalhadores iam e vinham, barcos eram arranjados, os fornecedores e todo aquele burburinho que costuma rodear as grandes empresas. Agora é o vazio. Muros pintados e nada mais.

      Gostei muito de ler o que escreveu.

      Vou colocar o seu texto ao pé do meu, acho que se completam.

      Muito obrigada, dbo. E vamos fazer figas para que as inquietações se mantenham longe de nós.

      Eliminar