Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

26 setembro, 2012

Vozes para além do rio. São água também.


Escrevo mas não é no papel que escrevo. Escrevo no ar e estas minhas palavras voam pela janela, sobrevoam o rio, descem até ao cais, deslizam sobre as águas, e voam, voam até chegar até vós. Escrevo, pois, palavras que deixam de ser minhas mal acabo de as escrever.

Depois, menina que gosta de fazer desenhos e de os pintar, enfeito as minhas palavras com um rio e depois entusiasmo-me a colori-lo, e é um exagero, cores e mais cores, e as cores saem-me quentes como um corpo em chamas e depois, para embelezar o rio, desenho uma ponte, e desenho-lhe um véu feito de fios transparentes, depois pinto um sol brilhante e o sol fica irreal e eu, sonhadora, peço-lhe que encha de luz a vossa paisagem. Depois, ainda, menina que gosta de amores, desenho um casal de namorados recortado contra um cenário maravilhoso mas quero que se perceba que a vida é pequena e efémera, um breve pulsar, e então eles ficam pequeninos, lá ao fundo, quase invisíveis. E depois desenho uma parede pela qual os anos têm passado voando, leves, brandos porque assim é a vida, vai passando, vai deixando marcas e eu não sei se é o tempo que passa pela vida ou se é a vida que passa pelo tempo como uma estrela cadente.

No fim, olho e digo ao desenho que está na hora da magia: vai rio, sai do écran, vai por aí fora, voa também, vai até à casa dos meus amigos, leva-lhes o teu cheiro a maresia e a tua cor feita de sonho dourado, vai sol, sai daí e voa até ao écran dos meus amigos, enche-lhes a vida de luz, vão namorados, voem também e vão encher de beijos a vida dos meus amigos, vai ponte, vai unir a vida dos meus amigos à minha.

E assim estou agora, na minha mão uns fios que seguram a ponte e esperando que vocês estejam a segurar o outro lado, nós dois unidos pelas palavras, pelo sonho, pelo impossível. A minha mão tão perto da vossa. Sentem? Sentem que estou aí, sentem as minhas palavras voando junto aos vossos olhos?



[Mais uma bela música de Boccherini aguarda por nós logo aí abaixo de mais um poema de Pedro Tamen, Senhor Poeta que tem lugar cativo aqui no Ginjal]


Fim de tarde no Ginjal quando, há dias atrás, os dias ainda estavam quentes 



                                        Vozes para além do rio. São água
                                        também, correm até à foz
                                        do meu ouvido. E refluem agora,
                                        líquidas, da foz do meu olvido.
                                        Alem do rio, vozes e acenos. Gritos
                                        tão leves, sobre os anos voando.
                                        A minha mão, a minha mão também
                                        esgueira um gesto curto enquanto
                                        a outra escreve. Desenha
                                        no papel seco a ponte, as pontes, todos
                                        os corredores das vozes donde chego
                                        à relva desta margem.


                                        [Poema de Pedro Tamen in Memória Indescritível]

2 comentários:

  1. Vi, mais que li, o que escreveu. Senti o cheiro a maresia, segurei os fios da ponte. Foi um momento só, mas encheu-me o coração.
    Tão belo, Amiga!
    Abraço, do outro lado da ponte.
    Mary

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    1. Muito obrigada, Mary. Fico contente por saber que está aí desse lado, recebendo as minhas palavras.

      Um abraço e dias felizes, Mary.

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