Para quê, então, falarmos no que o nosso encontro significou? Para quê querer saber qual dos dois ficou mais indelevelmente marcado? Para quê querer saber qual dois dois foi atingido em maior profundidade?
Somos diferentes, sempre fomos, sempre soubemos que somos. Mas isso também pouco conta. Temos uma parede de vento entre nós e essa parede é intransponível. O que nós fomos enquanto durou o nosso breve encontro ficou imobilizado naquelas tardes tão doces e agora, olhando para trás, nós somos duas estátuas silenciosas presas num espelho.
Sabemos os dois que a parede de vento é feita de muita distância. Não se consegue atravessar uma parede assim. Deixemo-nos, pois, ficar como estamos, cada um do seu lado, em silêncio, olhando as palavras, estas ou outras palavras, guardando os segredos, e recordando o primeiro beijo, as brincadeiras, os sorrisos, o cheiro a flores e relva cortada que entrava pela janela, as malícias ditas ou pensadas, os olhares indecentes, a ternura, a praia no inverno, os desencontros, os desacertos, o perdão, sempre o perdão, e mais sorrisos, e tantas, tantas coisas mais, tantas efémeras coisas mais.
Caminhámos docemente para um fim que estava muito próximo.
Preservemos agora com infinito carinho essa recordação para que no pensamento tenhamos sempre flores vivas e não folhas secas ou tristeza escorrendo dos nossos olhos.
[Saio do ciclo dos Compositores para entrar no dos Intérpretes. Começo com o Quarteto Lopes-Graça e Olga Prats interpretando Shostakovich. É logo a seguir ao poema de Natália Correio, aqui abaixo, que inspirou a glosa acima]
Entardecer numa praia da Costa da Caparica |
Pusemos tanto azul nessa distância
ancorada em incerta claridade
e ficámos nas paredes do vento
a escorrer tudo o que ele invade.
Pusemos tantas flores nas horas breves
que secam folhas nas árvores dos dedos.
E ficámos cingidos nas estátuas
a morder-nos na carne dum segredo.
[Poema IX de O livro dos amantes de Natália Correia in 'O sol nas noites e o luar nos dias']