Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

28 agosto, 2012

E ficámos cingidos nas estátuas a morder-nos na carne dum segredo


Para quê, então, falarmos no que o nosso encontro significou? Para quê querer saber qual dos dois ficou mais indelevelmente marcado? Para quê querer saber qual dois dois foi atingido em maior profundidade?

Somos diferentes, sempre fomos, sempre soubemos que somos. Mas isso também pouco conta. Temos uma parede de vento entre nós e essa parede é intransponível. O que nós fomos enquanto durou o nosso breve encontro ficou imobilizado naquelas tardes tão doces e agora, olhando para trás, nós somos duas estátuas silenciosas presas num espelho.

Sabemos os dois que a parede de vento é feita de muita distância. Não se consegue atravessar uma parede assim. Deixemo-nos, pois, ficar como estamos, cada um do seu lado, em silêncio, olhando as palavras, estas ou outras palavras, guardando os segredos, e recordando o primeiro beijo, as brincadeiras, os sorrisos, o cheiro a flores e relva cortada que entrava pela janela, as malícias ditas ou pensadas, os olhares indecentes, a ternura, a praia no inverno, os desencontros, os desacertos, o perdão, sempre o perdão, e mais sorrisos, e tantas, tantas coisas mais, tantas efémeras coisas mais. 

Caminhámos docemente para um fim que estava muito próximo. 

Preservemos agora com infinito carinho essa recordação para que no pensamento tenhamos sempre flores vivas e não folhas secas ou tristeza escorrendo dos nossos olhos.



[Saio do ciclo dos Compositores para entrar no dos Intérpretes. Começo com o Quarteto Lopes-Graça e Olga Prats interpretando Shostakovich. É logo a seguir ao poema de Natália Correio, aqui abaixo, que inspirou a glosa acima]



Entardecer numa praia da Costa da Caparica




                                          Pusemos tanto azul nessa distância
                                          ancorada em incerta claridade
                                          e ficámos nas paredes do vento
                                          a escorrer tudo o que ele invade.

                                          Pusemos tantas flores nas horas breves
                                          que secam folhas nas árvores dos dedos.
                                          E ficámos cingidos nas estátuas
                                          a morder-nos na carne dum segredo.


[Poema IX de O livro dos amantes de Natália Correia in 'O sol nas noites e o luar nos dias']

4 comentários:

  1. Amiga:
    Tinha saudades do Ginjal.
    Gostei do texto. Todos nós temos paredes de vento, lembranças, folhas secas nas pontas dos dedos, como diz a grande Natália.
    Logo vou ouvir Lopes Graça, o meu conterrâneo e Olga Pratts, tocar Shostakovich, que adoro.
    Abraço grande
    Mary

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Mary,

      Que boa visita, que contente fico quando a vejo.

      Estas semanas em que tenho tido tanto tempo para mim, parece que não me têm rendido. Faço almoço, faço jantar, arrumo daqui, arrumo dali, parece que me falta um horário apertado para conseguir produzir. Passa-se o tempo e, se quiser dizer como o ocupei, parece que fico atrapalhada, parece que perdi a minha produtividade, nem sei bem explicar.

      Hoje obriguei-me a voltar ao meu querido Ginjal, para ver se volto a entrar nos eixos.

      Gostei muito do poema de Natália Correia. É uma situação tão normal a dos encontros, desencontros, saudades, tristezas, frustrações. Apeteceu-me ficcionar, pegando nas palavras do poema. Gosto de o fazer e, antes, o meu dia de trabalho nos blogues começava por aqui. Música e a seguir poema. Escolhia um poema, o poema inspirava-me um texto e, depois, já com os dedos soltos, seguia para o UJM. Hoje acabei de escrever isto e em, vez de pegar logo no UJM, faltou-me vontade e só agora , já passando da meia-noite é que aqui estou de novo, como se durante o dia não tivesse tido tempo. Vá lá uma pessoa compreender isto.

      Um abraço Mary e muito obrigada pelo grande incentivo que são as suas palavras!

      Eliminar

  2. Olá, UJM no Ginjal

    Digo como a Maria: Já tinha saudades do Ginjal.

    O seu texto e o poema de Natália Correia, fazem jus à qualidade a que já nos habituou.

    Com tantas coisas positivas a envolvê-los por que não ficam juntos. É mesmo próprio dos mistérios da alma humana.

    Ouvi ontem o conjunto que aqui nos apresenta. E gostei.

    Já é um bocado tarde. Fico por aqui. Voltarei amanhã para 'explorar' um pouco o que se passa no seu outro blog.

    Beijos

    Olinda

    ResponderEliminar
  3. Olá Olinda,

    Imagine que, neste período em que estive a recuperar da cirurgia, perdi o ritmo de uma maneira que ainda continuo sem conseguir. Disso ainda não recuperei...

    Hoje vinha com ideia de retomar o ritmo diário aqui no Ginjal mas tive mais uma consulta média e só cheguei a casa às 9 e tal. E, por isso, só comecei no computador muito tarde e estive a responder aos comentários do UJM e com isto já é meia-noite e estou atrasada com tudo isto. Ainda não vai ser hoje.

    Parece impossível como é que antes o tempo me chegava e agora não.

    E sinto saudades, era por aqui que eu começava. Arejava aqui a cabeça.

    A ver se amanhã consigo.

    Um beijinho, Olinda e obrigada por tudo.

    ResponderEliminar