Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

27 fevereiro, 2014

Mas que coisa é homem, que há sob o nome: uma geografia? Um ser metafísico? Uma fábula sem signo que a desmonte? Que milagre é o homem? Que sonho, que sombra?


Que coisa é um homem, também eu gostava de ser. Um acaso da natureza? O golpe de génio de um ser superior? Não sei. Não sei o que sou. Não sei se eu sou a que pensa e escreve ou se sou o corpo que tem vida própria.

Que coisa sou eu? 



Porque se alojou no meu corpo esta que aqui vos escreve e não dentro do homem que cruza o horizonte algures no monte ou dentro da gata, minha irmã, que evita o meu olhar?

Não sei (e acho que se calhar também não é importante saber).





Mas que coisa é homem,
que há sob o nome:
uma geografia? 
um ser metafísico?
uma fábula sem
signo que a desmonte? 
Como pode o homem
sentir-se a si mesmo,
quando o mundo some? 
Como vai o homem
junto de outro homem,
sem perder o nome? 
E não perde o nome
e o sal que ele come
nada lhe acrescenta´ 
nem lhe subtrai
da doação do pai?
Como se faz um homem? 
Apenas deitar,
copular, à espera
de que do abdômen 
brote a flor do homem?
Como se fazer
a si mesmo, antes 
de fazer o homem?
Fabricar o pai
e o pai e outro pai 
e um pai mais remoto
que o primeiro homem?
Quanto vale o homem? 
Menos, mais que o peso?
Hoje mais que ontem?
Vale menos, velho? 
Vale menos morto?
Menos um que outro,
se o valor do homem 
é medida de homem?
Como morre o homem,
como começa a? 
Sua morte é fome
que a si mesma come?
Morre a cada passo? 
Quando dorme, morre?
Quando morre, morre?
A morte do homem 
consemelha a goma
que ele masca, ponche
que ele sorve, sono 
que ele brinca, incerto
de estar perto, longe?
Morre, sonha o homem? 
Por que morre o homem?
Campeia outra forma
de existir sem vida? 
Fareja outra vida
não já repetida,
em doido horizonte? 
Indaga outro homem?
Por que morte e homem
andam de mãos dadas 
e são tão engraçadas
as horas do homem?
mas que coisa é homem? 
Tem medo de morte,
mata-se, sem medo?
Ou medo é que o mata 
com punhal de prata,
laço de gravata,
pulo sobre a ponte? 
Por que vive o homem?
Quem o força a isso,
prisioneiro insonte? 
Como vive o homem,
se é certo que vive?
Que oculta na fronte? 
E por que não conta
seu todo segredo
mesmo em tom esconso? 
Por que mente o homem?
mente mente mente
desesperadamente? 
Por que não se cala,
se a mentira fala,
em tudo que sente? 
Por que chora o homem?
Que choro compensa
o mal de ser homem? 
Mas que dor é homem?
Homem como pode
descobrir que dói? 
Há alma no homem?
E quem pôs na alma
algo que a destrói? 
Como sabe o homem
o que é sua alma
e o que é alma anônima? 
Para que serve o homem?
para estrumar flores,
para tecer contos? 
Para servir o homem?
Para criar Deus?
Sabe Deus do homem? 
E sabe o demônio?
Como quer o homem
ser destino, fonte? 
Que milagre é o homem?
Que sonho, que sombra?
Mas existe o homem?



'Especulação em torno da palavra homem' (Carlos Drummond de Andrade) aqui dito por Sandra Corveloni



2 comentários:

  1. Sim o homem existe. É o passado da mulher.
    Um poema fantástico.
    Abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Este seu comentário é uma maravilha. Lembro um comentário seu de há tempos. Só um homem muito macho (se desta forma extrema me posso exprimir) poderia escrever uma coisa assim. Gostei muito.

      Obrigada, jrd.

      Um abraço.

      Eliminar