Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

07 maio, 2013

Abre-se o vermelho, rosa de magenta - Invólucro de contidos poderes num corpo numa voz


Nas linhas de um antigo poema eu sou koré, a jovem indiferente aos lascivos lamentos de um amante não suficientemente amado. De entre as várias korai que o poeta poderia ter escolhido, escolheu-me a mim, deusa fulva, inacessível artemes. Para sempre chorará o inacessível corpo, diz o poeta nessas páginas antigas. 

Mas isso é autobiografia e aqui é lugar de ficção.

Aqui eu sou rosa magenta, aberta e não indiferente ao azul do céu e do rio, luxuriante corola, botão branco de luz, uma boca aberta à maresia, sedentos lábios. E há uma outra flor mais pequena mas sou eu que me elevo, orgulhosa, despudorada. E a meus pés há um ser amarelo intenso que sai de uma barca também azul.   E esse ser dourado abre a sua boca e beija-me. E eu deixo-me beijar, flor magenta olhando o mar.

Ou não é só a barca que é azul, se calhar são também azuis as fortes ondas que levam a barca. E a barca levada pelo vento suão leva-me e eu deixo-me levar e vou, na minha imaginação, no colo do marinheiro que me leva de volta ao longo mar. 

Assim sou eu, hoje. Uma flor magenta aberta ao vento suão e que desafia a perfeita luz batida do rio azul. 

Falo de dentro das paredes, ouço os sons do vento e do mar, e o meu corpo contém mil amores antigos, mil voos contidos, mil voos voados. 

Mil voos sonhados, mil beijos molhados. E o meu corpo abre-se como uma boca molhada pela maresia. 

Abstracção a vogar, pássaro azul pousado no centro de uma flor magenta dançando numa parede doce, dolente.



[Abaixo da flor magenta na parede, um poeta que hoje se estreia (e estreia-se em grande, com um belo poema) no Ginjal, João Miguel Fernandes Jorge. A seguir continuo com a música do Mali, encantada com Toumani Daibaté. Como agradecer a quem me vai dando a conhecer tantas músicas e músicos que eu não conhecia?]






                                    Abre-se o vermelho, rosa de magenta
                                    corola a receber a recolhida indiferença do azul

                                   é uma barca em anúncio de vento favorável
                                   cresce luxuriante na abundância da sua luz

                                   o perfeito é apenas um entre os seus múltiplos
                                   pontos - azul que fere, em cunha, o ar de púrpura

                                   a sua presença desafia-nos. É uma barca que leva
                                   no azul as korai, ao serviço de um deus e no vermelho -

                                       tão intenso - um rapaz vai aos remos. Vermelhão
                                   e azul são a sua forma de barca, o seu organismo, a sua

                                   abstracção a vogar -
                                       invólucro de contidos poderes num corpo numa voz.



                                  [Poema XXXIV de João Miguel Fernandes Jorge in Oferenda]


2 comentários:

  1. Sem dúvida, uma bela imagem poética, exalando aromas de um corpo de mulher, uma flor aberta ao vento, entre a maresia e o azul da barca e do rio.
    Só a UJM, num dos seus sentidos delíquios de poesia e cor, nos poderia ofertar doces momentos de uma rosa magenta no seu mágico despertar.
    Belíssimo.
    Felicidades e muita saúde para uma flor magenta, aberta ao vento e ao sonho.

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    1. A flor magenta, agora escrevendo no interior de uma noite muito tranquila, abre-se num sorriso agradecido e deseja-lhe também uma bela noite e muita saúde e muitos sorrisos.

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