Nas linhas de um antigo poema eu sou koré, a jovem indiferente aos lascivos lamentos de um amante não suficientemente amado. De entre as várias korai que o poeta poderia ter escolhido, escolheu-me a mim, deusa fulva, inacessível artemes. Para sempre chorará o inacessível corpo, diz o poeta nessas páginas antigas.
Mas isso é autobiografia e aqui é lugar de ficção.
Aqui eu sou rosa magenta, aberta e não indiferente ao azul do céu e do rio, luxuriante corola, botão branco de luz, uma boca aberta à maresia, sedentos lábios. E há uma outra flor mais pequena mas sou eu que me elevo, orgulhosa, despudorada. E a meus pés há um ser amarelo intenso que sai de uma barca também azul. E esse ser dourado abre a sua boca e beija-me. E eu deixo-me beijar, flor magenta olhando o mar.
Ou não é só a barca que é azul, se calhar são também azuis as fortes ondas que levam a barca. E a barca levada pelo vento suão leva-me e eu deixo-me levar e vou, na minha imaginação, no colo do marinheiro que me leva de volta ao longo mar.
Assim sou eu, hoje. Uma flor magenta aberta ao vento suão e que desafia a perfeita luz batida do rio azul.
Falo de dentro das paredes, ouço os sons do vento e do mar, e o meu corpo contém mil amores antigos, mil voos contidos, mil voos voados.
Mil voos sonhados, mil beijos molhados. E o meu corpo abre-se como uma boca molhada pela maresia.
Abstracção a vogar, pássaro azul pousado no centro de uma flor magenta dançando numa parede doce, dolente.
[Abaixo da flor magenta na parede, um poeta que hoje se estreia (e estreia-se em grande, com um belo poema) no Ginjal, João Miguel Fernandes Jorge. A seguir continuo com a música do Mali, encantada com Toumani Daibaté. Como agradecer a quem me vai dando a conhecer tantas músicas e músicos que eu não conhecia?]
Abre-se o vermelho, rosa de magenta
corola a receber a recolhida indiferença do azul
é uma barca em anúncio de vento favorável
cresce luxuriante na abundância da sua luz
o perfeito é apenas um entre os seus múltiplos
pontos - azul que fere, em cunha, o ar de púrpura
a sua presença desafia-nos. É uma barca que leva
no azul as korai, ao serviço de um deus e no vermelho -
tão intenso - um rapaz vai aos remos. Vermelhão
e azul são a sua forma de barca, o seu organismo, a sua
abstracção a vogar -
invólucro de contidos poderes num corpo numa voz.
[Poema XXXIV de João Miguel Fernandes Jorge in Oferenda]
Sem dúvida, uma bela imagem poética, exalando aromas de um corpo de mulher, uma flor aberta ao vento, entre a maresia e o azul da barca e do rio.
ResponderEliminarSó a UJM, num dos seus sentidos delíquios de poesia e cor, nos poderia ofertar doces momentos de uma rosa magenta no seu mágico despertar.
Belíssimo.
Felicidades e muita saúde para uma flor magenta, aberta ao vento e ao sonho.
A flor magenta, agora escrevendo no interior de uma noite muito tranquila, abre-se num sorriso agradecido e deseja-lhe também uma bela noite e muita saúde e muitos sorrisos.
Eliminar