Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

14 março, 2013

e a cabeça nua entra já na noite tempestuosa


E se deixo cair o corpo para um dos lados é apenas para melhor sentir o vento. Ah o que eu gosto de vento. E se fecho os olhos é apenas para melhor imaginar o rio ou, então, porque o vento sopra forte ou porque quero pensar que está um anjo de grandes asas a passar rente a mim.

Não chames por mim. Escondo-me. Gosto de me esconder. Passo por trás da árvore, danço em volta, deixo-me ir. E os ramos nus não me tapam e tu vês-me mas eu não me importo. Finjo que não te vejo, finjo que não me vês. Por isso não me chames, não digas nada, quero sentir o silêncio e pensar que sou transparente.

Olho o rio lá em baixo, agitado, verde com laivos de espuma branca, e eu cá em cima, livre, deslizando nos vastos céus, escondendo-me, que não me sigas menino, e rodopio, e subo e depois deixo-me cair, ao sabor do vento, e lá estás tu, olhando-me, mas para que me olhas, menino? pois não sabes que quero fingir que não estás aí? não me catives, não me catives, menino.

Mas tu danças também em volta da árvore, menino, menino! que queres de mim, menino? e, o vento agiganta-se, e os raios atravessam o horizonte, e a chuva cai, e a noite desce e eu, então, procuro abrigo e aproximo-me, ai menino que me perdes..., e volteio e aproximo-me mais e mais e já não me escondo e desço, ai menino, menino, porque me seduzes tu? e o abrigo que eu procuro és tu e fecho as minhas asas em torno do teu corpo ardente e desço a minha cabeça sobre o teu ombro doce e deixo cair a máscara e, nua, nua, deixo que me deites por terra, sobre a terra macia e molhada, sobre as raízes, e deixo que deixes em mim a tua semente.

Ai menino, ai menino.



[Depois de mais um belo poema de Manuel Gusmão - e que encantada ando com este poeta - temos mais uma grande interpretação, desta vez a cargo de uma extraordinária Martha Argerich com Mischa Maisky que tocam Grieg]


Gaivota por trás de uma árvore nua no Ginjal



                                               O mar em listas esbranquiçadas ondeia-te
                                               o tronco, os ombros, o queixo e a boca.
                                               Sucede-lhe uma mascarilha acobreada
                                               e a cabeça nua entra já na noite tempestuosa,
                                               sobe e atinge os seus cumes nevados.

                                               Deitado em equilíbrio sobre a cabeça um galho
                                               em que se nota ainda a zona em que foi quebrado
                                               Deixa tombar à esquerda e à direita uma série de vagens
                                               secas e cada vez mais castanhas

                                               da direita para a esquerda.



['A pintura corpo a corpo . os corpos da pintura; pintores pintado. #21' de Manuel Gusmão in 'Pequeno tratado das figuras']


2 comentários:

  1. ... entretanto estão a desmantelar

    o Estado democrático

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Puma,

      Acabei no Um Jeito Manso de desancar as nódoas que nos (des) governam e chego aqui e leio este seu comentário que nem de propósito.

      Eu aqui no Ginjal sou mais zen, venho até aqui para descansar a cabeça mas, já que fala nisto, digo-lhe que concordo consigo. Mas digo também que cá estamos para lhes fazer frente.

      Eliminar