Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

04 junho, 2012

Quando o cientista quase cego encontrou os binóculos...


Vem, meu velho, anda comigo neste barco, ajuda-me a levá-lo até ao mar. Alimentar-nos-emos de peixes. Observarei as espécies com estes binóculos, que os meus olhos já de pouco me servem. E, o que os meus olhos não virem, nem com binóculos, contas-me tu, meu velho. Dir-me-ás de que cor são os peixes, com a luz, ou com a sombra, se andam à superfície ou na fundura, dir-me-ás se andam em grupo ou solitários. Não te preocupes por não saberes de biologia marítima, meu velho, eu não sei levar o barco e eu mal vejo, ser-me-ás muito útil, está descansado. Estou a contratar-te tal como aluguei o barco. 

...

Tantos dias já passaram, meu velho, ou talvez meses, tantas voltas já demos aqui neste rio. Já me disseste que o vias azul, depois verde, outras vezes chumbo, outras prata, outras dizes-me que são de cobre estas águas. Gosto de te ouvir descrever este rio. E gosto das palavras que usas para me descreveres os peixes, os polvos, as algas, usas palavras que nunca li nos meus compêndios, tens a fala dos poetas. Pergunto-te pelo formato, pelo tamanho, pela cor e tu falas-me em dança, falas-me em brilho azul, em ondulações que transportam cores, falas-me num sol dourado que enleia peixes que deslizam levados pela música das marés. E quase vejo o que tu me descreves. Gostas que eu te conte dos meus livros, dos meus estudos. Mas eu sei tão pouco ao pé do que tu sabes, meu velho amigo. Que posso eu contar que verdadeiramente interesse?

...

Tantos meses já passaram, meu amigo, ou talvez anos, tantas e tantas voltas já demos aqui neste rio. Nunca vivi tempos tão felizes, meu amigo. Contigo tenho aprendido a liberdade, a amizade, o gosto pelas palavras. Olha, tenho uma novidade: hoje descobri os meus velhos óculos. Vou pô-los e vou também usar os binóculos. E hoje és tu, meu amigo, que te vais sentar porque hoje sou eu que vou descrever para ti aquilo que vejo.

Escuta, meu amigo. Já consigo ver. Fecha os teus olhos que hoje vais tu tentar ver através das minhas palavras. Estou deslumbrado, até me custa a acreditar, parece um sonho. Vejo as gaivotas brancas, de longas asas, que nos acompanham. Vejo, lá ao fundo os flamingos rosados, vejo abetardas e sisões, vejo tantos pássaros, meu amigo, tantos, de tantas cores. E olha, meu amigo, nas águas que hoje estão de todas as cores, vejo não peixes, meu amigo, mas sereias, tantas sereias, meu amigo, tantas, tantas, cardumes de sereias. Estão de seios descobertos, luzem ao sol e riem-se para nós. Escuta como cantam, escuta meu amigo, escuta como nos chamam. Ah meu amigo, tantas, tantas sereias. Ah meu amigo, ah meu amigo. Anda, abre os olhos, anda, anda... Ajuda-me a apanhá-las que elas saíram do mar e andam pelos ares a voar.



[Abaixo do veleiro poderão, meus Amigos, ler o poema de José-Alberto Marques que me inspirou. Logo abaixo um fantástico dueto: duas vozes maravilhosas ao serviço da maravilhosa música de Mozart]



Elegante veleiro, todo ele apenas mastros, atravessa o Tejo paralelamente à Ponte Vasco da Gama



                            Quando o cientista quase cego encontrou os binóculos
                            alugou um barco e um barqueiro
                            fizeram-se ao mar
                            andaram à deriva os anos que contaram felizes

                            alimentavam-se de estórias

                            até que um dia o cientista colou os binóculos aos óculos

                            foi quando viu cardumes de sereias
                            abetardas
                            sisões
                            sobrevoando o mar
                           


[6º Poema das Autografias de José-Alberto Marques in British Barthes]

6 comentários:

  1. Amiga:
    Como é bom imaginar, dois homens diferentes, um que vê mal, mas sabe, outro, que vendo bem, tudo ignora. Vai contando o que vê e o outro, vê através dos olhos dele e da sabedoria. A pouco e pouco, o entendimento entre os dois é perfeito.
    Os óculos, representam o pescador, os binóculos, o quase cego. A colagem dos dois, fá-los ver sereias, gaivotas, flamingos.
    Desculpe a minha interpretação, se errei. Foi o que senti, lendo o seu lindo texto.
    Meu Deus! Como me lembrou "O Velho e o Mar"! Não que se pareça, mas no fundo, os olhos, a sabedoria, são semelhantes.
    Abraço
    Mary

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    1. Também eu, Mary, me lembrei de 'O velho e o mar', a persistência do homem, a luta contra a desesperança.

      O poema é lindo e contém a história. A partir daí foi o prazer de imaginar dois homens dando voltas durante meses ou anos, absorvendo as culturas e as vivências um do outro até se tornarem iguais em sabedoria e modo de olhar.

      No fim, talvez pelo sol e pela longo período vivido no mar, se calhar já com algumas (felizes) alucinações.

      Foi no que pensei mas a sua versão é possível e mais poética, mais bonita.

      Há dias em que escrevo com mais prazer e ontem foi um desses dias.

      Um beijinho Mary.

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  2. Viajar no tempo e nutrir a vida com estórias que fazem a plenitude das nossas vivências, num quotidiano que se espreita e amplifica no recurso aos olhos da sabedoria. Muitas vezes, só quando aliamos a visão mais simples à mais sofisticada é que conseguimos diferenciar os reais contornos e a verdadeira essência daquilo que nos rodeia.

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    1. Pois é, DBO, ver a vida pelo filtro exigente da erudição pode, por vezes, retirar aquele assombro, aquele espanto que é próprio das crianças que olham a vida com olhos inocentes e limpos.

      Por outro lado, para os menos letrados, quanta atracção pelo saber...!

      Imagino que dois homens de mundos muito diferentes poderiam, de facto, conviver na maior empatia, desenvolvendo uma estima sincera entre eles.

      (Eu, para dar o meu exemplo, canso-me, frequentemente, quando tenho que conviver com gente que sabe tudo, sabem o nome de todos os autores, o nome dos livros, dos filmes, dos realizadores, que fazem citações a torto e a direito, que impressionam pelo tamanho da sabedoria. Nessas alturas a minha cabeça deixa de funcionar, não me lembro de nada, só me apetece é 'pirar-me' dali para fora. Em contrapartida adoro falar com pessoas que falam de coisas simples, sem vaidades, sem querer impressionar ninguém, terra a terra. Acho sempre que é com pessoas assim que aprendo).

      Leio as suas palavras e imagino que consiga aconteça qualquer coisa de parecido.

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  3. Amiga:
    O Poema é muito bonito.
    Fiquei tão enfiada na história, que nem comentei o Poema. A foto é linda. Amanhã vou a Sesimbra de manhãzinha cedo e, vou ver o Tejo acordar.
    Beijinho
    Mary

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    1. Ali em cima esqueci-me de referir que desejo que a sua estadia em Sesimbra seja uma maravilha, no campo, ao pé do seu neto querido e dos seus filhos. E que derreta o olhar no Tejo que é um rio de uma beleza enorme.

      Mas vá dando notícias, está bem...?!

      Bons petiscos com os produtos biológicos da horta e um beijinho a todos!

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