Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

02 maio, 2012

Ouve, quando não fores capaz de falar, toca-me


Chega-te aqui. Assim, bem junto a mim. Deixa que te fale. 

Hoje o céu está vivo. O azul está muito azul, nem parece de verdade e as nuvens são ora brancas, ora cinzentas, ora densas, ora macias, e correm velozes ou, então, aninham-se, mansinhas e brincam à apanhada e fazem corridas. Deixa-me, pois, falar-te de nuvens. 

Não te rias, não... Já sabes que eu sou assim, gosto de falar destas coisas. 

Falava-te, então, nas nuvens. É que, sabes?, elas não dançam apenas no céu. Não, é como se dançassem também no rio. A sério... É que fazem sombra e o rio, que está cor de esmeralda, fica com manchas escuras que correm, unem-se, brincam - sombras que se cruzam no rio, que bailam. Tão bonito. 

E, depois, deixa que te fale nestes bancos onde estamos, nesta varanda sobre o rio. Podia ser a nossa casa. Não querias? 

Olha... Está quase a chover. Mas ficamos aqui mais um bocadinho, está bem?

Olha as gaivotas, olha como voam altas, olha ali aquele bando de pombos, já viste? Que bonito tudo isto, não é?

Agora vou calar-me, agora falas tu. Fala de árvores, conta-me como as folhas estão a nascer, fala de como se estão a fazer grandes, fala-me do verde, fala, fala das raízes, fala. Gosto tanto de ouvir falar de árvores e de pássaros.

Mas, olha, se não souberes o que dizer, não faz mal. Toca-me. Toca-me apenas. Também é bom.



[A seguir ao poema de Maria Sousa, poema de grande pureza, desça um pouco mais que vai ter uma surpresa. É La Bohème de Puccini numa inesperada versão]


O Tejo e Lisboa sob um maravilhoso céu numa tarde no Castelo de Almada


                                 escrevo o que ainda conheço
                                 nomes de ruas   pássaros   árvores
                                 monólogos de quem ainda fala alto
                                 é a minha voz ou a tua?
                                 como se tudo fosse uma metáfora sem fim

                                 lá fora a chuva confunde-se com gestos
                                 falamos do tempo, ponte entre o silêncio e o nada

                                 ouve, quando não fores capaz de falar, toca-me


                                 [Poema de Maria Sousa in 'Endurecimento de Lágrimas']

6 comentários:

  1. Amiga:
    Conheço o Castelo de Palmela. Foi fácil situar-me.
    Porque quando a leio, situo-me. Tento ver o local onde está (estamos), leio o poema, e só depois, o que escreveu.
    Parece-lhe uma forma caótica? talvez seja. Mas é assim que a entendo melhor, que faço minhas, as suas palavras.
    As nuvens dançam, sim. Correm, brincam à apanhada, choram, riem. Tudo isso, nós sabemos.
    Também sabemos que, um gesto, um pequeno aceno, enche o silêncio.
    Ambas gostamos de palavras. Às vezes, palavras que os outros não entendem. E são tão evidentes!
    Falamos do Rio, da chuva, das nuvens, de gaivotas. Palavras vulgares? Não para nós.
    Maria Sousa diz isso tão bem neste poema!
    "Nomes de ruas pássaros árvores..." Como é verdade!
    Não conheço a Maria Sousa, mas vou procurá-la.
    Gostei muito do poema.
    Termino com o último verso:
    "ouve, quando não fores capaz de falar, toca-me".
    Beijo
    Mary

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    1. Mary,

      O local é um castelo, sim, mas o de Almada. Mesmo sobre o Tejo. Conheço também muito bem o de Palmela que é lindo.

      Acho graça à sua 'abordagem'. É como eu a ler o jornal ou as revistas: de trás para a frente.

      Eu aqui faço assim: escolho um poema, depois escolho uma fotografia e depois é que escrevo o meu textozito.

      A escolha do poema é um bocado 'ao calhas'. Pego num livro e folheio até ver um poema que me 'diga' qualquer coisa. Provavelmente tem a ver com o meu estado de espírito. Tem dias que só me dá para o sentimento, tem outros dias que faço um esforço para a coisa não sair triste ou 'lamechas', tem outros dias em que me apetece ficcionar, outras alturas dá-me para a 'malandrice' e tenho que me esforçar para me portar bem.

      Mas há assuntos sobre os quais adoro falar: sobre palavras, por exemplo. Sobre a luz ou as sombras. Sobre a noite. Sobre gaivotas, sobre as suas asas, os seus voos livres. Sobre o rio. Sobre veleiros deslizando brancos e suaves.

      E gosto muito de ouvir falar de coisas assim. Aborrecem-me as pessoas que falam de coisas complicadas, eruditas. Gosto de pessoas que falam de coisas simples e que falam com gosto, com felicidade.

      Vejo que a Mary é assim pois as suas palavras são também sobre coisas simples e vejo que as usa com gosto. E esse gosto contagia.

      Obrigada pelas que aqui partilhou comigo, ou melhor: connosco.

      Um beijinho, Mary!

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  2. Cara UJM:
    Sentidas as palavras. Límpidos os poemas. Imaginosas as fotos!
    Rio que azulas os olhos dos amantes. Aveludas a verdura das palavras,com nuvens guarnecidas
    Guarda os sonhos alados e as juras prometidas!
    Abraço da
    Luísa sobe acalçada

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    1. Luísa subindo, feliz, a calçada,

      As suas palavras são um poema. Li-as e reli-as e soam como um poema.

      Azular os olhos dos amantes, falar palavras aveludadas (e eu adoro veludo verde), olhar nuvens guarnecidas, ter sonhos alados, fazer juras prometidas - ideias tão bonitas que dá vontade pegar nelas e sair por aí a escrever, escrever...

      Agradeço imenso que as tenha deixado aqui.

      Um abraço, Luísa!

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  3. Amiga:
    Claro que queria dizer Almada. 1º está escrito por baixo da foto, 2º do de Palmela, só veria Lisboa em sonhos.
    Culpa das limpezas, da empregada, que fala pelos cotovelos, quando estou a escrever. Eu bem digo: Hum...hum,hum... mas não resulta. A senhora deve ter engolido uma agulha de gramofone. Fala e não diz nada.
    Tenho que desistir de escrever, com ela por perto.
    Estou cansada.
    Beijinho, amiga
    Mary

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    1. Mary em fim de dia de faxina,

      Eu também não consigo escrever com alguém a falar comigo. Nem sei como é que a Mary ainda arranja disponibilidade mental para vir dar uma espreitadela ao computador em dia de limpezas e ainda por cima com alguém a falar em contínuo... eu dava-me uma neura e não conseguia (a menos que me isolasse...)!

      Mas agora descanse Mary. Um beijinho e um sono descansado.

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