Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

03 maio, 2012

Folheia estas imagens como quem da flor tocasse cada pétala


Ah, meus amigos, deixem-me aqui estar, não me digam nada, não me perguntem nada, deixem-me apenas aqui estar, deixem-me olhar estas imagens. Ah meus amigos que saudade, que saudade. Deixem-me aqui sozinha, sem palavras.

Eu vinha para aqui com o meu amor, vínhamos os dois, olhávamos o rio, olhávamos os grandes navios que se faziam ao mar e ele conversava comigo, dizia-me que um dia íamos os dois e eu sonhava com isso, sonhávamos os dois porque sabíamos que nunca iríamos, mas não interessa, íamos em pensamento e era bom na mesma.

E as nossas mãos tocavam-se, cúmplices, os dois a olhar o rio. E ele aproximava-se, chegava-se a mim, e eu sentia o seu cheirinho bom e o seu hálito doce, e nem precisávamos, depois, de falar. Era tão delicado o meu amor, oh meus amigos, era tão delicado. E dava-me o braço, depois, quando descíamos os degraus e eu olhava por ele e ele por mim, os dois amantes amorosos, cuidadosos. E íamos devagarinho e ele dizia, que grande barco, tinha uns cinco andares, e eu dizia que sim, que era grande e branco, tão bonito e depois ficávamos calados, felizes, tranquilos.

Mas um dia ele partiu, partiu antes de mim e eu agora vejo os navios só com os meus olhos e já não sinto a sua mão macia, tão leve, tão leve, e já não tenho quem me dê o braço nem com olhe por mim com cuidados de namorado, de amigo, de amante cuidadoso. Estou aqui e só tenho a sua lembrança por companhia. Ah, meus amigos, que saudade, que ausência, que vazio. 

Deixem-me aqui calada, sossegada, deixem-me recordar a sua presença tão amada, deixem-me tentar sentir o olhar intenso do meu amor. Ah, meus amigos, deixem-me estar atenta pode uma palavra do meu amor ter ficado solta no vento e voar agora até mim. 



[Abaixo da fotografia poderão ver um excerto de um belíssimo poema de Bernardo Pinto de Almeida e, logo a seguir, um belo trecho da Tosca na voz vibrante de Andrea Bocelli]


O Tejo e a outra banda avistados do Centro Cultural de Belém



                              Folheia estas imagens
                              como quem da flor tocasse cada pétala -
                              tal delicadeza é a que o seu rosto pede
                              se distante não se vê já senão nelas,
                              imagens que o lembram esquecendo. Basta
                              guardá-las numa caixa
                              ou desviar o olhar e já não está
                              não respira ofegante de tão próxima:
                              uma imagem não deixa em um perfume
                              o corpo singular comunicar-se,
                              não tem das mãos o toque quase etéreo,
                              dos olhos tal intensidade
                              que a nada saberia fixar,
                              da boca a presença incendiada. E
                              tendo a imagem disso
                              nada por ela se tem,
                              se na imagem vai e perde-se,
                              transfigura-se quando nela acolhe
                              a ausência e é a que relembra.

                             
[Excerto do poema 'As imagens' de Bernardo Pinto de Almeida in 'Negócios em Ítaca']

***

Adonia é um transatlântico
Alvo, grande com bandeira à proa 
Aparição gloriosa 
No rio Tejo de Lisboa 
Deslizando entre gaivotas
Que se dão no rio 
Carregava sonhos repartidos.

Vejo-o agora branco frio! 

Meu único desejo
Levantar âncora, e cair 
Nos braços de
Adonia, o navio.
           

[Poema da autoria de 'Luísa sobe a calçada' in comentário abaixo]


10 comentários:

  1. Cara UJM.
    se me permite um comentário baseado no seu texto, na foto (inspiradora) e no navio, que julgo ser o POESIA que já nos mostrou noutro post.

    POESIA é um transatlântico. Alvo, grande com bandeira à proa. Aparição gloriosa.
    No rio Tejo de Lisboa. Deslizando entre gaivotas. Que se dão no rio. Carregava sonhos repartidos
    Vejo-o agora branco frio. Meu único desejo Levantar âncora, e cair Nos braços de
    POESIA, o navio.

    E tenha uma boa noite
    abraço da
    Luísa sobe a calçada

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    1. Luísa,

      Tão bonito o que escreveu, tão em sintonia com a imagem, o poema, as minhas palavras. Que bem que escreve.

      Mas agora uma correcção: não era o Poesia, o Poesia era bem maior. Este, estive agora a ver, ampliando, chamava-se Adonia. Fui ver o significado da palavra e encontra-se aqui:

      http://en.wikipedia.org/wiki/Adonia

      E, curiosamente, se com Poesia as suas palavras são perfeitas, com Adonia ganhariam um novo e inesperado sentido.

      Obrigada, Luísa, e tenha um dia muito feliz!

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  2. Amiga:
    Fiquei sem palavras.
    Tome atenção. Numa rajada de vento, numa pétala de flor, gravada numa árvore, na asa de uma gaivota, está uma palavra do seu amor.
    Beijinho
    Maria

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    1. Mary,

      Onde andam as palavras que dizemos para ninguém? Onde andam as palavras que alguém disse e que não chegaram até nós?

      Tal como a Mary, eu também acho que andam presas nas nuvens, ou gravadas nas árvores, ou pousadas nas pétalas das flores, ou, tem toda a razão, nas asas das gaivotas, ou, até, empoleiradas nos beirais.

      Por vezes algumas dessas palavras desprendem-se e vêm pousar nas nossas mãos para que as tomemos, com gentileza de desvelo.

      Um beijinho, Mary.

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  3. Cara UJM:

    Grata pela observação, fui ver. Sem dúvida que ganha muito mais sentido, sendo que é também o verdadeiro nome do navio.
    E agora com outra forma.

    Adonia é um transatlântico
    Alvo, grande com bandeira à proa
    Aparição gloriosa
    No rio Tejo de Lisboa
    Deslizando entre gaivotas
    Que se dão no rio
    Carregava sonhos repartidos.

    Vejo-o agora branco frio!

    Meu único desejo
    Levantar âncora, e cair
    Nos braços de
    Adonia, o navio.

    Abraço da
    Luísa sobe a calçada

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  4. Luísa, subindo subtilmente a calçada,

    Mas que inspiração, Luísa-Poetisa!

    Que bem que fica, que bem que ilustra a fotografia e que bem que encaixa no ambiente. Vou repescá-lo e colocá-lo lá onde ficará melhor.

    espero que não se importe.

    Um abraço, Luísa.

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  5. no texto e nos poemas há elementos que lembram as canções de amigo e de amor, essas poesias medievais em que uma mulher lembrava o homem amado que partira, por vezes de barco, ou pergunta a um barco que passa se o viu.
    Curioso e expressivo poema de luisa sobre a calçada sobre o desejo de ir/partir.
    Mais até (para mim) que o de bpda poema labirintico (barroco) que exige esforço para ligarmos o principio ao fim sem nos perdermos pelo meio. A palavra "imagem" é central e destaco 2 expressões curiosas: presença incendiada e acolher a ausencia

    voltando ao de lsac, os 4 versos iniciais podem mesmo ser o mote do resto do poema:

    Adonia é um transatlântico
    Alvo, grande, com bandeira à proa
    Aparição gloriosa
    No rio Tejo de Lisboa.

    Deslizando entre gaivotas
    Que se dão no rio
    Carregava sonhos repartidos.
    Vejo-o agora branco frio!

    Meu único desejo:
    Levantar âncora, e cair
    Nos braços de
    Adonia, o navio.

    "olhávamos o rio, olhávamos os grandes navios que se faziam ao mar", bonita imagem de um estado emotivo centrado nos barcos e no mar.
    ver um grande navio é de facto algo que faz pensar, sobretudo quando se vê partir e pouco a pouco diminuir, desaparecer no horizonte.
    bonita fotografia a da vista do ccb.

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    1. Caro Patrício,

      Fiquei muito contente que tivesse gostado do poema da Luísa subindo a calçada. Também gostei imenso. Soa bem, dá vontade de o dizer em voz alta. Gostava de o ouvir dizer por alguém que soubesse dizer bem poesia.

      Tem razão: ver navios a fazerem-se ao mar é uma imagem fantástica, emotiva.

      Também gosto de os ver a chegar do mar, a entrarem vagarosos no rio, a fazerem um volteio para depois acostarem.

      É muito belo. Aí na Madeira também deve poder ver imagens assim, não é?

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  6. a proposito do tema, barcos, partidas, terras longe, transcrevo um bonito poema que foi musicado por gabriel fauré e cantado por interpretes como yves montand:

    Les berceaux - Sully Prudhomme

    Le long du quai les grands vaisseaux,
    que la houle incline en silence,
    ne prennent pas garde aux berceaux
    que la main des femmes balance.

    Mais viendra le jour des adieux,
    car il faut que les femmes pleurent,
    et que les hommes curieux
    tentent les horizons qui leurrent.

    Et ce jour-là les grands vaisseaux,
    fuyant le port qui diminue,
    sentent leur masse retenue
    par l'âme des lointains berceaux.

    Os berços de Sully Prudhomme

    ao longo do cais, os grandes navios,
    que as ondas inclinam em silêncio,
    não prestam atenção aos berços
    que mãos de mulheres embalam.

    Mas chegará o dia dos adeuses
    em que as mulheres deverão chorar
    e os homens, curiosos, tentar
    devem os horizontes que os atraem.

    e nesse dia os grandes navios,
    ao fugir do porto que diminui,
    sentirão a sua massa retida
    pelas almas dos longinquos berços.


    http://www.youtube.com/watch?v=7n8zsxygheg&feature=related

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    1. Caro Patrício,

      Tão oportuno e tão belo esse poema. Gostei tanto. Não conhecia (estou sempre a aprender consigo)

      E já coloquei o vídeo lá no post, que fica lá muito bem.

      Agradeço-lhe imenso.

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