Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

23 novembro, 2011

A greve geral não será decretada em Cantão

    
Dia 24 de Novembro, quarta feira, dia de Greve Geral. Tempos de inquietação, tempos de capitulação, tempos de avassaladora mediocridade, tempos de questionamentos vários, como chegámos até aqui?, o que fizémos nós para merecer isto?, dias de chumbo, de medo.

Ensinava-se a optimização fiscal, o enriquecimento rápido era louvado, emolulado, os proletários iam de férias a Punta Cana, as empregadas de escritório faziam ginásio e conversavam sobre as suas empregadas, todos se sentiam capitalistas, ricos e heróis.

E, um dia, toda a gente percebeu que o dinheiro se tinha evaporado - e, nesse dia, toda a gente acusou os seus governantes e, de seguida, quase todos exigiram outros governantes e, no dia seguinte, os que ganharam as eleições desataram a fazer muito pior, a cortar subsídios e ordenados, a aumentar impostos, e agora este nosso governante contradiz o que diz o presidente e cola-se às posições de uma governante alemã que quer mandar em toda a Europa (que já manda em toda a Europa) e que nos arrasta a todos para a falência.

E agora os homens e mulheres deste país, mais pobres, ameaçados, assustados, temem pelo seu futuro e percebem que estão a ser vítimas de quem apenas segue o rasto do dinheiro.

E agora, todos olham uns para os outros, não percebem o que aconteceu, não sabem como foi possível que toda a esperança tivessem desaparecido, não percebem porque parece o futuro uma coisa tão assutadora - e interrogam-se. Olham uns para os outros e interrogam-se. Onde estão hoje os homens (e as mulheres, claro!) fortes, determinados, que ainda procuram um certo e emplumado pássaro entre as nuvens, onde estão os cavaleiros do vento, os poetas, os guerreiros? Onde estão os homens que ainda se sentem vivos e invencíveis? Onde?

A greve geral pode não ter sido decretada em Cantão mas, no dia 24 de Novembro de 2011, foi decretada em Portugal, Europa.



[Marche mais um pouco, vamos até onde Rimsky Korsakov nos leva a ouvir mais uma história de Xerazade]

Não é uma manifestação - é a saída dos barcos depois de uma manhã de trabalho, num sábado


                     A greve geral não será decretada em Cantão. Não só
                     porque Malraux nunca mais escreverá essa frase
                     mas porque Deng Xiaoping disse que ser rico é ser herói.
                     Agora os proletários lutam para ser capitalistas
                     e o socialismo está de pernas para o ar.
                     Só eu não sigo a linha.
                     trago comigo a obsessão metafísica
                     eu sou eu mesmo a greve geral
                     que não vai ser decretada em Cantão.
                     A não ser que de repente os proletários
                     comecem a ler Li Bai
                     e em vez de seguirem o rasto do dinheiro
                     procurem 'um pássaro entre nuvens'
                     cavaleiros do vento
                     como eu
                     em Cantão.


                     ('Greve Geral em Cantão' de Manuel Alegre in 'Livro do Português Errante')
  

2 comentários:

  1. Muito bem, estimada editora!
    O seu escrito é um fortíssimo abanão, a lembrar o que 'isto' deveria ter sido.
    Agora é tarde, vamos morrer assim se não houver antes uma hecatombe monumental (seja isso o que for...)

    ResponderEliminar
  2. Pirata,

    Que contente fiquei por o ver aqui a comentar o meu texto.

    Um caminho descendente é um caminho finito. Ou invertemos a marcha (coisa quase impossível) ou há um estampanço ladeira abaixo, uns por cima dos outros ou contra uma parede (seja lá o que isso for, como muito bem você diz).

    Ainda hoje, em conversa com insuspeitos interlocutores, o assunto veio à baila: será assim tão mau sair do euro? Mas viver assim, a prestações, é isto alguma coisa?

    ResponderEliminar