Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

06 setembro, 2011

Sete factos pessoais: gravidez, filhos, namorados, livros, Fernando Pessoa e a minha professora mais querida, Joana Meira de seu nome



Já recebi este miminho no Um Jeito Manso e, por isso, poderia agora limitar-me a agradecer a gentileza da inspirada contadora de Histórias de Nós e não seguir os mandamentos da oferta.

Mas, porque é engraçado, vou dar um bocadinho de seguimento, coibindo-me, no final, de passar o testemunho.

Então:

Regra Nº 1: Indicar quem me nomeou

Pois foi a super-mãe, a autora de Histórias de Nós que vos sugiro que visitem, e, até, que lhe deixem um tema ou simplesmente uma palavra para que ela crie uma história a partir daí. Vão ver que é surpreendente.


Regra Nº 2: Indicar sete factos pessoais

1 - Sempre quis ter filhos e tive-os relativamente cedo. Não tive mais porque viver e trabalhar na cidade, longe da família, com horas em transportes, sem apoios familiares, tudo muito longe umas coisas das outras, se revelou muito difícil de conciliar. Se não fossem esses enormes constrangimentos, teria tido mais uns quantos. Mas os que tenho dão-me, e sempre deram, uma extraordinária alegria, tenho uns filhos maravilhosos.

2 - Gostei imenso de estar grávida. Nunca passei mal, nunca tive um enjoo, uma tontura, não me incharam pernas ou pés (apesar de ficar com uma barriga enorme), trabalhei até ao fim e, no fim, como o tempo passava e eles não saíam, os partos tiveram que ser provocados. Não quis anestesias nem nada que, facilitando, pudesse, no entanto, mais tarde vir a saber-se que podia ter algum efeito secundário nas crianças. Apesar dos partos se virem a revelar complicados, quis estar presente de corpo e alma, sem epidural, sem máscara, sem nada. Tive, na altura, dores de morrer, pensava mesmo que era impossível continuar a suportar dores tão violentas por muito mais tempo, eram dores que me dilaceravam. Mas mal eles saíam, era um alívio extraordinário, alívio físico por, de repente, ficar sem dores, alívio por saber que estavam bem e uma felicidade por os conhecer, uma felicidade como não há igual (não há igual mas pode haver maior e um dia eu explico, talvez não aqui mas no UJM). E ainda hoje, de vez em quando, sinto saudades de sentir um serzinho a mexer-se dentro de mim. Sempre achei que gerar uma criança e senti-la a formar-se e, depois, a crescer dentro de nós é uma coisa tipo ficção científica, um milagre.
3 - Acho que a infância é um período fundamental na formação das pessoas. Eu ainda hoje me acho a mesma de quando tinha 4 ou 5 ou 6 anos. Por isso, sempre respeitei os meus filhos desde pequenos. Uma criança não é uma quase pessoa, que se trate com menoridade. Uma criança é uma pessoa com uma extraordinária capacidade de compreensão, de aprendizagem. Sempre ouvi e respeitei a opinião dos meus filhos e sempre lhes mostrei a minha absoluta confiança neles. Isso não quer dizer que lhes fizesse todas as vontades. Provavelmente eles hoje recordam-se mais das vezes em que os contrariei do que das inúmeras vezes em que os estimulei, os encorajei. Mas é mesmo assim. E sei que hoje já compreendem os meus cuidados quando não permiti que fizessem algumas coisas que muito queriam e talvez compreendam os meus sustos sempre que os deixava fazer coisas (porque não poderia continuar a protegê-los para o resto da vida), achando que tinham um risco inerente, as noites acordada à espera que chegassem para ter a certeza que chegavam bem. Mas sempre lhes mostrei o quanto confiava nas suas capacidades e sempre os estimulei a irem atrás do que queriam, a ir sem medo. 

4 e 5. Comecei a ler muito cedo, não sei exactamente precisar quando. Entrei para a escola infantil aos 4 anos e já sabia ler, escrever, fazer contas. Talvez por isso, sempre gostei muito de ler. Ainda pequena lia tudo o que apanhava, livros infantis da Formiguinha, depois os livros da Berthe Bernage e também as Crónicas Femininas e tudo o mais que me aparecesse. Acho que já contei que aos 13 ou 14 anos tinha lido quase tudo o que havia publicado de Fernando Namora, e Ferreira de Castro, poesia de José Régio, aos 15 já devia ter lido os grossos romances de D.H. Lawrence, e Somerset Maugham e por aí fora. Lia o que havia em casa, lia o que trazia emprestado de amigos dos meus pais, o que eu própria comprava, o que ia buscar à biblioteca do liceu, tudo a que podia deitar mão. Mas, para me ajudar a ler melhor, apareceu na minha vida uma fantástica professora de Português. Não me lembro em que ano foi, talvez no que agora equivale ao 8º ano. Mas havia nesse ano uma actividade circum-escolar (acho que se designava assim) e que, creio, seria Introdução à Poesia ou coisa do género. Quem a dava era essa mesma professora. Inscrevi-me logo e foi uma coisa fascinante. Ela levava os livros e nós líamos e interpretávamos os poemas. Mas líamos também prosa, como Platero e Eu. Lembro-me que, por vezes, íamos lá para fora, para um bocado de campo ao fundo do recreio, perto do campo de futebol. Eram momentos de magia. Aprendi a escutar o silêncio que faz respirar as palavras, aprendi a apreciar a musicalidade das palavras e forma harmoniosa como se articulam entre si, aprendi a intuir os pensamentos por detrás das aparências. Eu devia ter 13 anos e ansiava pelas aulas com esta professora, especialmente por esta aula especial, extra curricular, uma tarde por semana. Ela já tinha uma certa idade (ou, pelo menos, é assim que me recordo dela) e tinha uma penugem macia a cobrir o rosto macio e bondoso, umas mãos macias e poéticas, gentis. Chamava-se Joana Meira e vive desde então no meu coração.

6. No liceu, não me lembro em que ano, dávamos Fernando Pessoa, talvez no que agora corresponde ao 9º ano. Nessa altura eu tinha um affaire intenso, uma paixão a sério, com um dos meus colegas de turma. Jogava muito bem futebol, e eu adorava vê-lo a jogar e também quando acabava, todo suado, cabelo molhado, tshirt molhada, ofegante, vermelho, e ele a olhar para mim, a ver se eu tinha apreciado a sua exibição, era muito inteligente, muito bom aluno, mas era um rebelde, frequentemente envolvido em brigas e tareias, sempre metido em trabalhos, muitas vezes com professores, e essa mistura exercia em mim um grande fascínio. Todo dado a números, a físicas e a químicas, foi um dia posto, na aula de português, a recitar o Mostrengo da Mensagem. Ninguém daria nada pela sua capacidade de ler poesia. No entanto, leu-o de uma forma tão inesperadamente sentida, com tal emoção, que todos nos arrepiámos. A própria professora ficou transida, petrificada, surpreendida e, durante um bocado, sem palavras. Ele próprio tinha ficado quase emocionado ao dizer a poesia daquela forma. Claro que ainda fiquei mais apaixonada. Depois disso, muitas mais vezes lhe foi pedido que lesse poesia. E uma vez a professora (nesse mesmo ano? não me lembro) pôs-nos aos dois a interpretar a cena emocionante do Frei Luís de Sousa e foi com imenso sentimento que o fizémos. A professora disse que lamentava não nos poder pôr a interpretar o Romeu e Julieta.

7. Claro que, desde que nasceram, incuti nos meus filhos o gosto na leitura. Quer do ponto de vista lúdico, quer do ponto de visda didáctico, os meus filhos habituaram-se de muito pequenos a ouvir histórias, a aprender, a ter livros e brinquedos, a sentir que não se pode viver sem livros. Fizeram as colecções completas da Aventura, do Triângulo Mágico, e os livros da Alice Vieira, e Enciclopédias e tudo o que queriam. Foram excelentes alunos e hoje escrevem muito bem e são leitores assíduos, pessoas informadas e cultas. Os livros são uma fonte de saber, uma companhia, um estímulo, pilares, esteios, guias. Prefiro-os em papel, acho que sempre os vou preferir em papel, mas quem sabe se aos poucos nos vamos habituando a lê-los num qualquer outro suporte...? Não sei. Mas, se isso acontecer, como é que eu vou poder oferecer livros aos meus meninos, aos grandes e aos pequeninos?



E assim, desta forma, subverti o paradigma do Ginjal e Lisboa: hoje não foi música, nem poesia. Mas acho que hoje pode ser, hoje estou de férias.

4 comentários:

  1. Coisa mais engraçada: eu também fui aluna da Joana Meira. Eu vivi a minha infância e adolescência em Faro, ela foi minha professora talvez no 5º ano (actual 9º), já não me recordo bem. Mas dela lembro-me bem, lembro-me que falava de Sebastião da Gama que conhecera. Tenho ideia de ela já não ser nova, mas para os alunos, os professores parecem sempre muito mais velhos, sei bem disso :)

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  2. Exactamente, amiga de Sebastão da Gama. Falava-nos muito dele, com saudade, com muita estima e líamos coisas dele.

    Mas, comigo, isto passou-se em Setúbal.

    E tenho ideia que fosse já pessoa de idade mas é o que diz, para os miúdos, acima de cinquenta já se é velho e se forem sessenta, então, é idoso mesmo, sexagenário a precisar de ajuda para atravessar a estrada. Por isso, a esta distância, não sou capaz de precisar que idade teria ela. Mas marcou-me.

    E é engraçado que nos encontramos aqui, no espaço virtual, duas ex-alunas da mesma professora.

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  3. Adorei o seu post.
    A Regra Nº 2 é deliciosa. Também na gravidez passei bem. Nem uma dôr de cabeça tive trabalhei até ao fim e a barriga do meu primeiro filho era enorme. Ao nascer pesava 4,260 Kg. O nascimento de um filho é das melhores coisas que podem acontecer. Hoje não é o dia ideal para eu falar neste assunto porque enquanto as minhas recordações são de felicidade/alegria a minha amiga que teve o 1º filho no Domingo, este acontecimento ocupará o seu próprio lugar na vida dela de modo diferente. O bébé nasceu sem vida e hoje, tenho dificuldade em dizer... foi o funeral.
    Poderia não ter comentado mas hoje ao ler o seu post que como já referi adorei, pensei porquê hoje? Por isso a minha partilha.
    Continuação de boas férias e que sorte a sua Um Jeito Manso tem direito a Verão!

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  4. Olá, Becas,

    Obrigada pela visita e pelas suas palavras. O meu mais novo também era assim, giga...

    E quando nasceu a mais velha, ao mesmo tempo que eu, estava a ter o seu bebé uma outra rapariga. Naquele hospital, na fase de dilatação ia-se para uma sala, chamada a sala de dilatação, onde estávamos a ser monitorizadas e separadas umas das outras porque a sala tinha uns recantos e, para além disso, cortinas. Eu estava perto dela e não me dava para gritar. Mas ela gritava imenso e chorava, totalmente descontrolada. O marido ou namorado estava com ela e eu, quando o vo, vi-o também enervadíssimo. Mas o que desestabilizava imenso era a gritaria e o choro dela, uma coisa excessiva. A mim, que estava também bem atrapalhada com dores, a ouvir aquelos critos e choros, ainda mais me custava e comentei isso com a enfermeira. Então ela disse-me que ela tinha o bebé morto mas que o bebé tinha que sair, que ia tê-lo como se estivesse vivo. Fiquei petrificada. Nunca imaginei. E compreendi o desepero, a tristeza, a angústia, a revolta dela. Nunca mais me esqueci de tamanho sofrimento.

    Por isso, percebo bem o sofrimento da sua amiga e o vosso, porque acontecer isto é do pior que pode acontecer a uma mulher. è o destroçamento absoluto.

    Obrigada por ter partilhado, a vida é isto mesmo, tantas vezes uma festa e outras vezes uma coisa que não se compreende.

    Volte sempre.

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