Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

28 fevereiro, 2017

Há-de vir um dia em que chega a tua carta




As águas estão paradas, pálidas. Fazes-me falta. As águas estão silenciosas. O tempo parou. Não sei de ti. Não recebo flores nem palavras nem o céu se põe azul nem as gaivotas cruzam os céus. 

Podias vir até mim. Podias escrever-me uma carta. Podias dizer que te lembras de mim. Podias dizer que, tal como me acontece, também a ti te falta o ar, se esvai o sangue, se ensombra a luz do dia. Podias escrever para que só eu perceba que é para mim que escreves e dizer-me palavras que o teu coração invente. Podias contar-me como, em segredo, sonhas com o dia em que vais ter-me nos braços. Mas não escreves. 

Não sei de ti e sinto tanto a tua falta.

Não deixes que para mim o tempo permaneça parado, sem luz, em silêncio.
Não deixes.
Diz-me por onde andas, descreve-me os teus caminhos, espalha rosas no chão que pisas. 
Deixa que eu te adivinhe, deixa-me que eu consiga chegar até ti.
Deixa. 

Saberás tu como são longas e tristes as noites em que em vão te espero?  Saberás como soletro as palavras que de ti recordo para com elas reconstruir o teu nome? Saberás como, em silêncio, chamo o esse teu nome? Saberás como são obscuras as noites em que a tristeza queima o meu coração?

Escreve-me. 

Escreve-me até que a aurora te adormeça. Traz-me alguma alegria. Conta-me de ti, enche-me de palavras. Traz-me palavras como se me enchesses de rosas.

Escreve-me.


Há-de vir um dia em que chega a tua carta
e há-de vir um dia em que já aqui não estou
e um momento sem eco a fim de ser silêncio
já sem reverberar da perda nem do dano. E
há-de haver uma noite para todos os cantos
até os mais obscuros nos limites da voz
e outra que se ergue entre todas sonora
de um líquido frio que queima como a neve
e faz ver o sol levantar-se com ela. Essa
voz que conjuga uma e todas as letras
aquelas que ficaram aquém dos alfabetos
num modo de a tristeza se esquecer de si
mesma. E num clarão de luz
ou num rasgo inesperado tornar-se coincidente
o que nasceu partido. E há-de haver um feixe
de rosas muito claras a deitar-se na aurora
com a penumbra das casas. Um chão
onde se acaba o teu caminho e o meu. Onde
possa ir deitar-me numa noite sem fim
em que já nada espero.

['A alegria' de Bernardo Pinto de Almeida in Negócios em Ítaca]


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Concerto para violoncelo de Boccherini numa interpretação de Rostropovich

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