Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

05 novembro, 2015

Com as letras do teu nome escrevo sal e sol, procuro o sul - azul é a bandeira do teu nome.




Não digo o teu nome. É um segredo só meu. Mas ele vive, letra a letra, impresso no meu coração. É um nome que quase escondo de mim, que esqueço, que soletro em silêncio. Soletro só para mim, sem saber porquê. Mas fico-me pela primeira letra, logo as outras abafadas pelas lonjuras da noite, aturdidas pela luz branca da lua lá tão distante.

O teu nome chega-me como num sonho, nas asas brancas de um grande pássaro que vem do lado de lá do rio, que traz o sal das praias do sul, o sol da praça luminosa onde me perco pensando em ti.

O teu nome mistura-se com o meu, unidos, apaixonados, abraçados, abraçados, o teu nome levanta o meu no ar, o teu nome faz o meu voar. 

O teu nome tem transparências e cores dentro, tem palavras muito leves, feitas de um ar muito puro, tem cores suaves, notas de música, asas de anjos brancos, de borboletas azuis, de flores cor de rosa, desenhos de amor, pétalas, saudades, acordes feitos de harmonia e luz.

O teu nome tem mãos cheias de paz, tem um olhar que me faz sorrir, tem uma ternura que me beija. O teu nome é meu, vive em mim, dorme comigo, habita os meus sonhos, debruça-se sobre mim, afasta o cabelo do meu rosto, acaricia o meu despertar, deixa doces alvoradas nas minhas manhãs. Traz serenidade às minhas noites.

O teu nome vive guardado dentro de mim. 


Muitos anos depois foi o teu nome
que veio ter comigo.
A casa  está agora cheia de palavras
onde o teu nome ecoa. Falam de ti
os livros, os quadros nas paredes,
os pequenos ruídos da noite.

O teu nome é um pássaro, um gato
que ronrona, um comboio
que atravessa os campos da memória.
Está em toda a parte o teu nome.
Paris, Zurique, Amesterdão, Madrid
são cidades da linha to teu nome.

Eu chamo-me o teu nome, chama
onde me aqueço e esqueço
tudo o que estava antes de ti.
Com as letras do teu nome escrevo
sal e sol, procuro o sul, azul
é a bandeira do teu nome.

No teu nome viajo, no teu nome regresso,
sou rio, mar, deserto,
um cravo de Abril, uma canção de Brel,
sou tudo isso às portas do teu nome.

['O teu nome' de Manuel Alberto Valente in 'poesia reunida - o pouco que sobrou de quase nada']

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As fotografias foram feitas no Ginjal

Jacques Brel interpreta Quand on n'a que l'amour

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03 novembro, 2015

Dum grito de loucura, de toda a matéria escura sufocada e contraída nasce o grito claro




De um sonho meu nasceu um dia um misterioso personagem. Inquieto, quieto, insubmisso, meigo, desatento, atento, amante de palavras, suave, forte, amante da poesia mais do que eu, os poemas rolando felizes na sua boca com a intimidade dos segredos muito bem escondidos, segredos revelados a quem conhece da cumplicidade o afago, a ternura. Assim o sonhei. Assim o descrevi em histórias, em palavras inventadas.

De onde nasceu essa pessoa não saberei dizer, talvez de labirintos longínquos, de escadas infinitas, de grutas loucas, roucas, de gritos insanos, de sombras frescas, de recantos acolhedores, de memórias perdidas, de devaneios inocentes, de promessas dissonantes. Sabia que essa pessoa não existia senão dentro da minha imaginação. Sabia. 

Até que um dia ela saíu das minhas mãos, materializou-se. As suas palavras passaram a ter som, o olhar sorriso, as mãos movimento, o calor corpo. Essa pessoa existe. Fala com poemas, traz luz às palavras, cor às imagens, raízes às recordações, asas ao desejo. Visita-me, dança comigo, abraça-me, sorri comigo, pega-me nas mãos, levanta-me no ar, deita-me no seu peito, beija-me devagar, com urgência. E eu fecho os olhos e vejo-o tão bem, tão bem, sinto-o, cheiro-o, está aqui junto a mim, ouço a sua respiração, sinto o calor do seu corpo, a macieza das suas mãos atentas, íntimas.

E já não sei se é sonho, se é despertar, se é gente, se é loucura, se é uma esperança insubmissa. E o que falo em segredo dentro de mim talvez seja já um grito, um grito azul, um grito claro que quer rasgar o futuro.


De escadas insubmissas
de fechaduras alerta
de chaves submersas
e roucos subterrâneos
onde a esperança enlouqueceu
de notas dissonantes
dum grito de loucura
de toda a matéria escura
sufocada e contraída
nasce o grito claro

['O grito claro' de António Ramos Rosa in Antologia Poética]

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As fotografias foram feitas no Ginjal.

Renée Fleming interpreta Après un rêve de Gabriel Faurè acompanhada de Jean-Yves Thibaudet ao piano

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