Devagar caminho sobre a água. Hesito. Tenho medo de não saber prosseguir. Perigosos são os caminhos das mulheres como eu. Arrisco, arrisco, atravesso abismos, desafio os deuses. Mas depois temo. Passo após passo, devagar, devagar. Talvez me deixe mergulhar.
Abeiras-te devagar. Vens com o teu olhar. Em silêncio. Mostras-me o assombro das mãos. De longe foram estas as palavras que me chegaram: olho assombrada. Não percebo. Procuro. E depois chego a castelos abandonadas, galeras afundadas, lanças perdidas. E agora, enquanto caminho, receio que venhas de novo com o desencanto de quem viu fugir o seu destino.
Mas eis que te vejo sorrir. Mostras-me as tuas mãos. Dizes-me que não estão vazias, que as trazes cheias de sonhos. E eu abeiro-me de ti. Nossos serão, pois, todos os sonhos.
Dizes-me que não tenha medo, que não despertaremos infernos, que não incendiaremos almas alheias. Acredito.
Fecho os olhos, deixo que me retires dos caminhos incertos das águas. Deixo que me seques, que me embales. Deixo que me faças sentir humana, frágil, mulher. Deixo que me beijes, deixo que incendeies a minha força. Deixo que as tuas carícias desfaçam a minha vontade, deixo que me tomes durante todos os instantes, para sempre, naquela breve eternidade em que tudo é tão pouco. E olho assombrada as tuas mãos cheias de luz.
Medo do amor
quando tudo é fome.
E onde tudo é tão pouco,
medo de a carícia
despertar insuspeitos infernos.
Medo de sermos
só eu e tu
a humanidade.
E morrermos de tanta eternidade.
['Medos' de Mia Couto in 'tradutor de chuvas']
[Com referência a 'Perdi os meus fantásticos castelos' de Florbela Espanca e a 'Apesar das ruínas' de Sophia]
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As fotografias mostram paredes pintadas no Ginjal
De Antonin Dvorak: Song to the Moon (de Rusalka) com Anna Netrebko
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