Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

27 outubro, 2015

Medo de a carícia despertar insuspeitos infernos





Devagar caminho sobre a água. Hesito. Tenho medo de não saber prosseguir. Perigosos são os caminhos das mulheres como eu. Arrisco, arrisco, atravesso abismos, desafio os deuses. Mas depois temo. Passo após passo, devagar, devagar. Talvez me deixe mergulhar. 

Abeiras-te devagar. Vens com o teu olhar. Em silêncio. Mostras-me o assombro das mãos. De longe foram estas as palavras que me chegaram: olho assombrada. Não percebo. Procuro. E depois chego a castelos abandonadas, galeras afundadas, lanças perdidas. E agora, enquanto caminho, receio que venhas de novo com o desencanto de quem viu fugir o seu destino.

Mas eis que te vejo sorrir. Mostras-me as tuas mãos. Dizes-me que não estão vazias, que as trazes cheias de sonhos. E eu abeiro-me de ti. Nossos serão, pois, todos os sonhos.

Dizes-me que não tenha medo, que não despertaremos infernos, que não incendiaremos almas alheias. Acredito. 

Fecho os olhos, deixo que me retires dos caminhos incertos das águas. Deixo que me seques, que me embales. Deixo que me faças sentir humana, frágil, mulher. Deixo que me beijes, deixo que incendeies a minha força. Deixo que as tuas carícias desfaçam a minha vontade, deixo que me tomes durante todos os instantes, para sempre, naquela breve eternidade em que tudo é tão pouco. E olho assombrada as tuas mãos cheias de luz.


Medo do amor
quando tudo é fome.

E onde tudo é tão pouco,
medo de a carícia
despertar insuspeitos infernos.

Medo de sermos
só eu e tu
a humanidade.

E morrermos de tanta eternidade.


['Medos' de Mia Couto in 'tradutor de chuvas']


[Com referência a 'Perdi os meus fantásticos castelos' de Florbela Espanca e a 'Apesar das ruínas' de Sophia]
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As fotografias mostram paredes pintadas no Ginjal

De Antonin Dvorak: Song to the Moon (de Rusalka) com Anna Netrebko 
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26 outubro, 2015

Dizer um nome é sempre uma heresia





Olho as minhas mãos sobre o teclado. Deslizam, independentes da minha vontade. Escolhem letras sem que eu as guie. Neste momento não existo, não tenho vontade, não tenho nome.

Os dedos procuram dizer o que eu não saberia nomear: porque escrevo, porque aqui estou, por quem quero ser lida. Não sei. Talvez as minhas mãos velozes o saibam, elas que soltam palavras no ar como quem solta pássaros que procuram o seu destino. 

Chegarão talvez intactas as minhas palavras e vocês que as recebem lê-las-ão sem espanto, conhecê-las-ão como minhas, palavras nuas, palavras sem dono. Saberão que foi uma mulher que, numa noite escura, de frio e chuva pesada, se desprendeu delas, uma mulher sem rosto, sem nome.

Tu que aí estás no meio de uma multidão imensa, tu que eu não conheço, de quem nada quero saber, de quem quero estar distante - tu também saberás que é para ti que escrevo, tu também invisível, tu uma presença silenciosa, sem nome, sem rasto, sem que nem um fio de luz vosso chegue até mim.

Poderia, eu sei, poderia brincar, seduzir só pelo prazer da conquista, pelo prazer do sorriso velado, poderia até dizer-te que quero que me espreites o decote, me levantes a saia, me digas segredos, me sussurres poemas, me surpreendas com olhares indecentes. Mas não digo, não é verdade.

Poderia, pelo menos, confessar-te que te quero a ouvir dizer o meu nome em surdina, o meu nome rolando gostoso na tua boca, sílaba a sílaba. Mas não digo, não é verdade.

Poderia confessar que quero dizer o teu nome, o teu nome escondido, dizer o teu nome, ciciar ao ouvido o teu nome, dizê-lo como quem faz um carinho, uma suave e lenta carícia, o teu nome beijado pelos meus lábios. Mas não digo, não é verdade.

Não. Sou apenas um vulto secreto, uma mulher invisível que atravessa a densa noite de chuva, uma mulher sem nome, que escreve para pessoas sem nome. 

Sei que me compreendes: dizer o teu nome, dizeres o meu nome - que heresia seria; dizer um nome é sempre uma heresia, sabes bem. Não. Não o faremos.


Não direi o teu nome para
nós evidente pois estás no centro
da multidão que fomos quando a outros
disputámos o óxido do ouro

Não direi o teu nome como outrora pedi
que não dissesse o meu nome quem tinha
o poder de o dizer em pleno dia:
dizer um nome é sempre uma heresia


['Dizer um nome' de Gastão Cruz in Óxido]
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As fotografias mostram paredes degradadas e graffitadas no Ginjal.
A música é uma canção tradicional russa: Sinos nocturnos

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16 outubro, 2015

Há um ponto sem chão nem ponte em que só é preciso abrir os braços e voar.






Com um olhar serás capaz de me tirar o chão. Aprende isso. Com um olhar e um sorriso serás capaz de me tirar o controlo, o raciocínio, tirar-me de mim, com um olhar serás capaz de me deixar disponível para ti. Aprende isso para que percebas que não o deves fazer.

Estou a avisar-te. Prolonga o olhar, prolonga, deixa-te estar assim, parado, a olhar para mim e ver-me-ás sem força, sem armas, sem saber o que fazer, sem saber o que dizer. Olha para mim dessa forma, olha, e sentirás que estás a despir-me, a deixar-me vulnerável, à tua mercê. Por isso, não o faças. O risco é maior do que pensas. Aviso-te: não o faças.

Olha-me, olha-me assim e depois não te queixes se um dia eu te cair nos braços. Olha-me, olha-me. Olha-me assim, de longe, um sorriso clandestino, um sorriso de quem se aventura por terrenos proibidos - sabes que são proibidos, sabes, sabes que sim. 

Olha-me assim se me queres descobrir. Olha-me, sente-me, toca-me a pele, a alma. Olha-me. Olha-me como se estivesses de olhos fechados, apenas a imaginar-me. Olha-me, olha-me nua nos teus braços, as pontes abolidas. Mas depois não te queixes. Avisei-te. Olha-me assim, despudorado, olha-me assim e depois não te admires quando me vires a voar. A voar, a voar. A voar para me aproximar mais e mais e mais de ti. Olha-me, olha-me, mas não te admires quando me sentires alojada no teu coração.



Há um tempo para estar só
há um tempo para estar nu
há um tempo que falta para ser
o bastante uma coisa e outra
há uma ponte em direcção ao tu

que é necessário atravessar e que
é necessário, coragem, minar
e há um ponto sem chão
nem ponte em que só é preciso
abrir os braços e voar.

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O poema pertence a O Quarto Azul e outros poemas de Rui Caeiro

Viajei ao som dos coros da Igreja Ortodoxa Russa

As fotografias foram feitas no Ginjal
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14 outubro, 2015

Tão linda que só espalha sofrimento, tão cheia de pudor que vive nua





Há dias assim, sem lua, o céu escuro, a noite cansada, as palavras que fogem para lugares inalcansáveis. Estás aí, eu sei, estás aí e talvez esperes por mim. Estás aí e eu sinto-te, perto, esperando um sinal, uma palavra perdida, escondida, invisível. Mas o céu emudeceu, o rio está envolto em negrume, as minhas mãos deslizam pelas palavras que voam com uma melancolia nova. Voam de mim, as palavras. Voam, sabes?

Abro a janela, tento que a aragem húmida me traga uma nota de música, um choro, um riso, qualquer coisa. Mas não, é silêncio o que vejo desta janela escura, um silêncio pesado. 

Olho a ausência à minha frente, o escuro, e, porque tenho vontade de voar, imagino que chegas até mim e, em segredo, me dizes:

Essa mulher, flor de melancolia
Que se ri dos meus pálidos receios
A única entre todas a quem dei
Os carinhos que nunca a outra daria.

Fecho os olhos, leio as sombras que escondes no meio da luz, recolho flores, acaricio as cores que espalhas no espaço infinito. Fecho os olhos e penso em ti. Fecho os olhos, e tu tão longe, tão longe, tão longe. Existes? Existes? Estás aí?

Sonharás, às vezes, comigo, inventarás abraços nunca dados, beijos proibidos, inventados, momentos loucos que nunca foram nossos? Dirás, como se dissesses a verdade, memórias que nunca nos pertenceram? Assim:

Essa mulher que se arremessa, fria
E lúbrica aos meus braços, e nos seios
Me arrebata e me beija e balbucia
Versos, votos de amor e nomes feios.

Lamentarás um dia ter sonhado comigo? Ou não? Tu que me conheces tão bem como se me conhecesses, dirás que sou como a lua, longínqua, nua? E que só espalho sofrimento? Dirás isso, acusando-me? Ou desculpando-me? Dizes isso só para ti? Dizes, como num lamento:

Uma mulher que é como a própria Lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua

Ah, não me respondas. Deixa-te estar em silêncio, preso à sombra do silêncio. Sabes, nada posso fazer. Gostava de, para ti ser uma estrela, gostava de encher de luz a tua vida, gostava de te transportar sobre flores e versos. Mas nada posso fazer, sou apenas uma mulher que vive nua, uma mulher feita de música, luar e sentimento.


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O título deste post e o excerto final pertence ao poema pertencem ao Soneto do Corifeu de Vinicius de Moraes que é lido por Rafael Mendes. As outras duas estrofes pertencem ao Soneto da Devoção também de Vinicius.

As fotografias foram feitas, este fim de semana, no Ginjal.
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02 outubro, 2015

Um dia prometeste deixar no estuário da nossa cama






Não pensámos, não, que fosse eterno. Por vezes fingíamos acreditar mas ríamo-nos logo a seguir para que ficasse claro que sabíamos que um dia terminaria. O sabermos que era efémero dava mais valor ao que tínhamos. E, enquanto o tínhamos, sentíamos que era eterno mas não o dizíamos, não queríamos que o nosso amor se tornasse risível. 
Tecias sedas com os meus cabelos entre as tuas mãos e dizias vou tecer um manto invisível para nos cobrirmos quando dormirmos na beira do rio e eu deixava que o calor das tuas mãos, desfiando-me lentamente, me transportasse leito fora como se já pelo rio o meu corpo navegasse, junto ao teu, junto ao teu. 
Tanto que eu gostava, na cama, de sentir a pele do teu corpo junto à pele do meu corpo disponível, teu, teu. 
As tuas mãos percorriam os contornos do meu corpo, tão macio, dizias tu, e eu gostava de te ouvir, segredando-me convites indecentes ao ouvido e isso era um segredo teu, só teu, só teu. 
As minhas pernas enleavam-se ainda mais nas tuas, e eu deixava que o teu corpo respirasse sobre o meu, navio suave deslizando por um rio vibrante, água e fogo, flores e vento, pássaros e sonhos, amor meu, amor meu.
Lembras-te? 

Lembras-te dos nomes que usavas para dizer o meu nome? Dos nomes que usavas para dizer o teu amor? Dos nomes que usavas para dizer o teu desejo, o meu desejo? Lembras-te?

Lembras-te de como me abraçavas, a tua boca escondida pelo meu cabelo, e tu, indecoroso amor meu, dizendo maldades, inquietando-me? E do rio, lá em baixo, que não sabia refrescar o calor do meu corpo, lembras-te?

E depois um dia foste-te. Não te despediste. 

Nunca mais te vi. Nada sei de ti. Nem sei se ainda sei o teu nome. Nem sei se ainda sei o meu nome. Nem sei se ainda existo. Sem ti, nem sei se alguma vez existi.

Fecho os olhos e tento recordar-me do nome que dizias quando dizias o meu nome. Mas o que ouço é apenas uma voz branca, sem palavras. Uma voz vazia, uma voz vazia desfiando memórias sem olhos, perdidas na cama que era nossa e que hoje está vazia.

Meu amor que te amo tanto, não voltes para mim, deixa-te estar no recanto mais profundo do meu sangue, lá onde não poderás voltar para ti. Amor meu, amor meu.




que foi que    de repente     eu disse
para que começasses a dar outros nomes ao que
pensávamos ser eterno    e habitar no
mais profundo recanto do nosso sangue

ouve-me   ouve-me   e dá depois o
nome que quiseres às mãos que um dia
prometeste deixar no estuário
da nossa cama

onde hoje apenas
se desenha o côncavo lugar do que
ardilosamente roubaste na partida


[de Alice Vieira in Os armários da noite]

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Yiruma interpreta Dream

As fotografias foram feitas no Ginjal

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