Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

03 abril, 2014

Os desiludidos do amor estão desfechando tiros no peito. Do meu quarto ouço a fuzilaria. As amadas torcem-se de gozo. Oh quanta matéria para os jornais.


Aos desiludidos, eu prefiro os iludidos do amor. Viver as ilusões do amor é tão bom, borboletas no peito, sonhos doces, lágrimas lentas tanta a emoção. 

Que importa que possa ser ilusão, se é coisa boa? Desde que não se coloquem as ilusões altas de mais, é bom viver a doçura do amor, é bom. E que venha a poesia ao de leve, macia como um veludo perfumado e manso, e que as vozes ciciem segredos e poemas e que haja beijos e beijinhos e olhares e abracinhos, afagos quentes e um desejo em crescendo. Boa essa ilusão.

Desilusões é que não vale a pena.


Casal de gaivotas no Tejo junto ao Ginjal


Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais. 
Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas. 
Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno. 
Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia... 
Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e de segunda classe). 
Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles. 


['Necrológio dos desiludidos do amor' de Carlos Drummond de Andrade in 'Brejo das Almas', dito por Fernanda Torres]






***

DESILUSÃO?

Porque o Amor
Se dissolve
No espectro fechado
Dos dias iguais
Ele está
Como se lá não estivesse
No simples gesto de chegar.
Cansado
De abrir a porta

--------------

Sentada estás
No meu silêncio
Presente
Na estranha distância
De não te ter
Olhas-me
Imagem
Tenho-te em mim
Porque tu
Me habitas

---------
Escrever
O teu rosto
A sombra exacta dos teus seios
A dimensão líquida da tua pele
Na planície branca
Do meu poema.
Mar de palavras
Sempre desfeito
Pelo ruído desajeitado
Da minha sede



[Poema de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]


4 comentários:

  1. Todos eles jogaram a roleta russa da ilusão, até que um dia acertaram...

    :)

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  2. Os seus comentários são sempre certeiros. Deve ser um adversário temível no jogo. Não há subtileza que lhe escape.

    :)

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  3. JOAQUIM CASTILHO02 abril, 2014

    Olá UJM

    DESILUSÃO?

    Porque o Amor
    Se dissolve
    No espectro fechado
    Dos dias iguais
    Ele está
    Como se lá não estivesse
    No simples gesto de chegar.
    Cansado
    De abrir a porta

    --------------

    Sentada estás
    No meu silêncio
    Presente
    Na estranha distância
    De não te ter
    Olhas-me
    Imagem
    Tenho-te em mim
    Porque tu
    Me habitas

    ---------
    Escrever
    O teu rosto
    A sombra exacta dos teus seios
    A dimensão líquida da tua pele
    Na planície branca
    Do meu poema.
    Mar de palavras
    Sempre desfeito
    Pelo ruído desajeitado
    Da minha sede

    um abraço



    ResponderEliminar
  4. Olá Joaquim, bom dia!

    Que poema tão bonito... Vou já colocá-lo lá em cima.

    Há temas inesgotáveis, que fazem nascer palavras.

    Muito obrigada.

    Um abraço!

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