Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

03 março, 2014

Boa noite. Eu vou com as aves.


Cresci, mãe, cresci mas a menina que fui ainda existe dentro de mim. Tu sabes, mãe, que sou ainda a mesma. Tratas-me pelo mesmo nome com que me tratas desde que nasci. Tu e todas as pessoas que me conheceram então. Para ti e para todas elas sou ainda a mesma. E sou. É estranho porque já não teria idade para o ser. Mas sou. Alegre, curiosa, deslumbrada.Tomara que sempre assim me conserve, não é, mãe? Não quero ser velha, por muitos anos que já tenha e por muitos anos que ainda venha a ter. Não tenho feitio para me sentir e portar como uma velha.

E, quando me for, que vá voando, rindo, feliz, para desfrutar a liberdade dos grandes espaços. Com as aves. Como as aves.


Manhã de chuva no Ginjal - o Tejo picado e Lisboa envolta em névoa

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe 
Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos. 
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais. 
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz. 
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura. 
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos. 
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe! 
Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos; 
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura; 
ainda oiço a tua voz:
          Era uma vez uma princesa
          no meio de um laranjal... 
Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber, 
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas. 
Boa noite. Eu vou com as aves. 

Gaivota quase parada no ar no céu do Ginjal sobre o Tejo



['Poema à Mãe' de Eugénio de Andrade, in "Os Amantes Sem Dinheiro"]


Video realizado por Lauro Martins e Manuel Capitão, no âmbito da UC Imagem em Educação, Mestrado Tecnologia Educativa - Universidade do Minho 2012


Voz de Nuno Miguel Henriques


Música: Ave Maria - Gounod/Bach


2 comentários:

  1. Perfeita moldura para um poema belíssimo de um poeta perfeito.

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    1. Obrigada. Acontece-me frequentemente escolher um poema ao acaso e depois ir escolher uma fotografia de entre as últimas que fiz e parecer encontrar uma que me parece mesmo a calhar. Mas, se calhar, sou eu que as quero encaixar no poema. Ou então há mesmo alguma coisa que me leva a, sem querer, escolher um poema para uma fotografia que fiz nesse dia ou dias antes.

      Não sei. É tudo feito sem pensar (não tenho tempo para isso, agarro no computador sempre tão tarde).

      O poema é uma maravilha mas calhou-me num dia em que, a seguir, vi parte daquele filme que estava a passar na RTP 1. A finitude do corpo pode ser uma coisa terrível.

      Obrigada pelo seu apoio.

      Um abraço.

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