Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

19 novembro, 2013

Se tiveres de escolher um reino escolhe o relento


A noite. Meu ninho, meu aconchego. A noite, meu reino.

Quando, como hoje, me sento ao volante e percorro quilómetros e quilómetros - e sozinha vou ouvindo a música, vendo a paisagem, e sei que ainda me esperam horas de trabalho e que ainda falta tanto para chegar a casa - penso que, não tarda, cairá a noite e que, na noite, envolvida pelo veludo macio da escuridão, caminharei rente ao rio. E logo sinto uma expectativa que me anima, uma quietude que me serena.

Depois, mal vejo a hora de me mudar e me dirigir para os cais, para essas fronteiras de onde os solitários espreitam os rios, e enfrentam a frialdade do relento, e enfrentam o medo da solidão, e de onde se vê como os navios deixam um rasto silencioso e branco na negrura das águas.

O ar de noite, rente ao rio, está muito frio. Quase ninguém. As luzes que se reflectem no rio são um alabastro de prata, as pedras da calçada ficam quase douradas, a mulher que sozinha, num banco, de frente para a grande cidade, quase parece feita de pedra macia - e tudo me parece acolher.

Olho com delongas este meu canto, este meu pedaço de mim. Esta é também a minha casa.

Daqui a nada, a beira do rio acolherá um novo dia. E eu, deslumbrada, assistirei ao seu nascimento aqui da janela de onde espreito o tempo que passa. A minha casa é, assim, o rio e a janela de onde o espreito, o meu mundo feito de pequenos instantes, eternos e sem nome.



[Abaixo de Lisboa e do Tejo avistadas numa noite muito fria, recebo, uma vez mais, o Poeta Padre José Tolentino Mendonça. A seguir, Jorge Palma e toda a sua emoção com acompanhamento de João Gil]


No cais de Cacilhas, sobre o Tejo, de frente para Lisboa



                                                           Se tiveres de escolher um reino
                                                           escolhe o relento
                                                           a noite tem a brancura do alabastro
                                                           ou mais extraordinária ainda

                                                           Ao que vem depois de ti
                                                           cede o instante
                                                           sem pronunciar
                                                           seu nome


['Versões do mundo' de José Tolentino Mendonça in 'A noite abre meus olhos']



2 comentários:

  1. O reino do relento (e que belo é) só mesmo na poesia.
    Ninguém consegue ser poeta quando o relento tem a cor da noite escura.

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    1. Um relento bom é aquele por onde já se espreita um fiozinho da luz da manhã.

      O pior é quando as notícias que nos chegam quase nos impedem de ver a luz.

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