Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

10 outubro, 2013

e todas as improváveis certezas dissolvem-se nos lençóis em desordem


Quando estou deitada, o meu cabelo espalha-se na almofada, tapa-me o rosto. É um mar onde gostas de mergulhar. E eu gosto de te sentir a cheirar-me, a navegar sobre o meu corpo, gosto de sentir as tuas mãos a deslizar sobre a minha pele.

A janela do quarto está sempre aberta. Gosto de sentir o ar fresco, a humidade da maresia, gosto que a frialdade da noite chegue até mim. Queria que as noites fossem todas assim: eu nua, o cabelo como ondas espalhando-se na areia, tu junto a mim, aquecendo o meu corpo disponível. Carícias, beijos, palavras inocentes, uma respiração a dois - não seria preciso muito mais.

Mas a noite traz-me as sirenes dos navios, traz-me a lembrança das partidas. Sei que vais partir. Um dia vais partir.

Um dia vou ficar nesta cama como uma árvore arrancada num areal. Um dia a noite vai trazer-me os sons da solidão. Talvez, então, vá até à janela e olhe o farol junto ao rio e pense que algures, lá longe, muito longe, estejas tu. 

Estarei à tua espera porque sei que sempre voltas, sei que não há outros braços que te abracem como os meus. É que os meus são braços feitos de palavras de amor, de liberdade, braços que jamais te quererão prender. És tu, marinheiro de muitos mares, que me costumas dizer que nunca navegas por mares tão atraentes como o meu corpo, como a espuma do meu cabelo rebentando nos lençóis. 

São tão atraentes os abismos, costumas tu sussurrar-me ao ouvido antes de te fazeres ao mar.



[Abaixo do casal que conversa junto ao farol que ilumina o rio, um poema de uma Senhora Dona Poetisa de quem muito gosto: Alice Vieira. E, a seguir, temos mais um belíssimo momento: Rossini interpretado por Kate Aldrich e Marianna Pizzolato]



Farol de Cacilhas à noite



                              Depois do ruído do elevador e
                              das sirenes do nevoeiro
                              começa-se     lentamente      a recear
                              a noite

                              porque não vai haver tempo de dizer
                              penso no teu cabelo como no mar

                              e todas as improváveis certezas dissolvem-se
                              nos lençóis em desordem
                              no caos da partida



                             ['Dos velhos dias', 6, de Alice Vieira in 'O que dói às aves']



1 comentário:

  1. Boa noite, UJM

    Uma coincidência interessante. Acabo agora mesmo de ler num outro blogue um poema de Alice Vieira, ' A concha perfeita da tua mão' e, por lá, estive a referir que, geralmente, quando ouvimos o nome de Alice Vieira temos a tendência de a enquadrar (eu, pelo menos) apenas na sua obra infanto-juvenil, quando afinal ela é vastíssima privilegiando praticamente todos os tipos de escrita.

    E que bela Poetisa que ela é! Do seu poema a UJM arrancou o âmago da sua sensibilidade, escrevendo um texto, um dos seus melhores, em que a partida está latente mas também a disponibilidade da espera confessa a incondicionalidade do amor.

    Quanto a mim: vou recuperando aos poucos e sinto-me bem. Muito obrigada por se interessar. :)

    Beijinhos

    Olinda

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