Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

03 outubro, 2013

Devolve-me esse corpo


O teu olhar pousa nas águas sem saber quanto desejo que pousasse antes em mim. Olhas o rio e o teu olhar navega e é veleiro e é pássaro e é nuvem. Não sabes que estou aqui olhando o teu corpo e querendo que me vejas, que o teu corpo se abra para mim. 

Em silêncio espreito-te, em silêncio, que medo que me vejas, que te zangues, que te assustes, que me aches ridículo. Mas talvez não. Talvez me queiras. Talvez me chames, talvez queiras que te abrace. Tanto que eu o desejo.

Vejo-te entre as árvores, um corpo pousado entre as árvores e nem vou dizer que és uma flor ou um pássaro ou um gato, nem quero que saibas que tenho pensamentos tão inocentes. 

Levanta-se uma aragem, as folhas agitam-se, escondo-me mais, tenho medo que espreites, que me vejas. Fecho os olhos, quase não respiro. 

E, então, quase como se sonhasse, penso que te estou a ver dourada pelo sol, tão serena. Terei eu alguma vez esse corpo tão intangível? Ter-te-ei alguma vez nos meus braços e eu navegando dentro de ti? 

Depois ouço um bater de asas, o grito livre de um pássaro. Abro os olhos.

O meu coração pára: já lá não estás. 

Voaste. E nunca saberás que, entre as árvores, em silêncio, coração exangue nas mãos, um amante inventado para sempre ficará a sonhar com o teu corpo distante.



[Abaixo da mulher pousada junto ao rio, mais um poema de Pedro Tamen. E, logo a seguir, Bach pela mão de um grande intérprete, Keith Jarrett]





                                               Devolve-me esse corpo.
                                               Esse que não tive, que não tenho
                                               mais que no fugaz olhar
                                               por cima do meu ombro
                                               porém não para trás

                                               Devolve-me o que não é meu
                                               nem nunca será meu,
                                               tal como o pássaro
                                               que por lá fora canta
                                               fora da minha mão,
                                               fora do meu corpo.

                                               Devolve-me esse pássaro
                                               e poisa nesse ramo
                                               que o meu olhar alcança.



                                               [Poema 44 de Pedro Tamen in Rua de Nenhures]

4 comentários:

  1. Aleluia! Há vida (de novo) no Ginjal... :))

    Belo poema e não menos belo este seu texto, UJM. Já tinha saudades.

    Bj

    Olinda

    ResponderEliminar
  2. Olá Olinda!

    Isto requer disciplina e um mergulho em águas profundas. A ver se retomo a disciplina e a concentração. Não é fácil. Uma pessoa deixar-se ir e deixar as palavras saírem sem dono não é fácil. Ou melhor, até é fácil, a pessoa tem é que estar totalmente à solta. A ver se agora vai.

    Espero que já esteja totalmente recuperada e esquecida daquilo por que passou.

    Um beijinho e muito obrigada. As suas palavras são um poderoso incentivo.

    ResponderEliminar
  3. Complementaridades.
    Excelentes; o texto, o poema e a interpretação musical.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. jrd, tão simpático.

      Isto de escrever requer prática e uma concentração distinta consoante os 'estilos'. Eu, que escrevo que me desunho no UJM, chego aqui e é outra coisa, tenho que ter ainda menos barreiras (e eu não tenho muitas...), tenho que deixar que as mãos funcionem sem comando. E isso não é simples. A nossa cabeça está habituada a amestrar as mãos, a voz, os pensamentos.

      A ver se consigo manter a disciplina para me reabituar.

      Muito obrigada pelo incentivo.

      Um abraço.

      Eliminar