Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

09 outubro, 2013

Com os olhos bem abertos abarco toda a queda. Eu sei, é outono.


Não tens mundo, dizias-me. Encolhia-me, eu, encostado à parede na beira do cais, olhando o rio e os barcos que nele buscam outros mundos.

Não tens mundo, tantas vezes o ouvi que quase acabei convencido.

Mas, no fundo de mim, sabia que não tinhas razão.

O mundo para mim é o que vejo e o que sonho e as palavras que digo em silêncio e que constroem caminhos que me levam onde nunca fui. Mas nunca fui capaz de to dizer. E tanto que queria. 

De todas as vezes que percorri estes caminhos, sozinho, sonhador, olhando as asas dos pássaros e as velas dos barcos, pensava que um dia te iria dizer que tenho mundo, sim, um mundo muito puro, muito vasto, sem limites, sem medos.

E esse dia chegou, foi hoje: hoje enchi-me de coragem. A porta estava aberta, a escada escura subindo na direcção da luz e, ao fundo, a buganvília em flor, vibrante, cor de fogo. Subi. Devagar. Coração numa ânsia. Relembrei todas as palavras com que, ao longo de anos, fui enchendo todo o espaço do meu imenso mundo.

Depois sentei-me no último degrau e fiquei a olhar o rio lá em baixo. Esperei por ti até ser noite. Vi o sol afogar-se no rio, em fogo. Tive vontade de me atirar, em queda livre, despenhar-me (na esperança que aparecesses para me salvar).

É outono e eu ainda espero por ti. Quero que entres no meu mundo. 

Esperarei o tempo que for preciso. Até ao fim dos tempos, até ao fim do mundo.




[Abaixo da buganvília que espera no cimo da escada, temos um poema de Armando Silva Carvalho e, a seguir, Kate Aldrich, uma grande intérprete, traz-nos Carmen de Bizet]



Escada numa casa arruinada no Ginjal



                                                 Entrego estes frutos minerais
                                                 tardios.
                                                 Envolvo numa sombra a mão
                                                 que mos recebe.
                                                 A isso chamo eu mundo.
                                                 Entrego mais e mais, amei falsificando,
                                                 e ajeito o pescoço à lâmina
                                                 dos dias.
                                                 Com os olhos bem abertos abarco
                                                 toda a queda.
                                                 Eu sei, é o outono.



[Poema da página 34 de Armando Silva Carvalho in Canis Dei]

1 comentário: