Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

12 agosto, 2013

Interessam-me os voos desabitados e a pequena hora de ninguém


Regresso ao Ginjal. De facto, nunca o abandonei. É para lá que os meus passos me levam. 


Preciso do ar fresco que sobe do rio, preciso dos planos espelhados onde as gaivotas também se revêem, preciso da majestade dos grandes navios que passam ao largo e da elegância dos ágeis veleiros que vêm adornar perto de quem os olha da margem, preciso de olhar assim Lisboa, a bela, derramada sobre as águas, preciso de caminhar rente às casas arruinadas, cheias de uma vida que ficou viva, agarrada às paredes.

Preciso dos gatos vadios, esquivos, sedutores, que me olham desafiadores, serenos ou talvez não. Preciso de ver a luz que vem dos amantes que se amam à luz do dia, e também a que vem dos que se escondem nas sombras. 

Preciso de aprender com os pescadores, pacientes, sabedores. 

Preciso de admirar as gentes silenciosas que ainda se abrigam nas poucas casas que resistem à erosão dos tempos que correm, ásperos, salgados. Preciso de ver as roupas estendidas, bandeiras de dignidade, de sobrevivência.

Preciso de sentir por perto as palavras que imagino voando soltas e livres à minha volta, nestas breves horas de ninguém, em voos desabitados, fugindo do vazio suspenso do vazio, cercando-me como se eu viajasse numa transparente nave louca, suave, muito pura.

Regresso, pois, a casa, ao Ginjal.




[Abaixo da roupa branquejando no estendal, um poema de Rosa Maria Martelo. E logo a seguir o canto de um grupo de adolescentes angolanos, Tunjila Tuajokota.]




Roupa num estendal junto ao jardim do Ginjal



                                                  Interessa-me o inconcreto branquejar
                                                  da roupa no estendal (o branco, não)

                                                  mais do que o peso da água, ver
                                                  que o nada não se vê na água a evaporar

                                                  na luz do tecido em contraluz interessa-me
                                                  o vazio suspenso do vazio
                                                  quando a roupa enforma ao vento e sobe
                                                  no arame, interessa o risco que sustém a louca nave,
                                                  os voos desabitados e a pequena hora de ninguém.



['Branco' de Rosa Maria Martelo in 'A ponte afunda-se no rio' in Relâmpago nº 31/32]


2 comentários:

  1. Fez bem em regressar ao Ginjal . Lisboa precisa de quem a admire à distância de um golpe de asa .

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  2. Pois é, jrd. Eu estava mesmo já com saudades. mas isto de escrever em dois registos completamente diferentes requer uma disponibilidade mental que as solicitações e a desconcentração de férias tornam difíceis. Depois retomei o trabalho mas ainda com a cabeça um bocado aérea. A ver se agora vai...

    Obrigada!

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