Fugindo do ruído que me polui as entranhas, desloco-me até à beira do rio. Tardes quentes, quase abafadas, estas. Chego-me à beira do cais, tento que alguma aragem suba das águas azuis e me refresque a alma. Mas não consigo. Não há nem um sopro. O ar está quente, abúlico.
Há um estranho silêncio, pesado, no ar. Não há gaivotas, não há gatos, não há ondulação. Não passa um único barco. Parece que o mundo parou. Abafado, pesado, parado - assim está o ar, assim está o tempo, estes tempos.
E, então, eis que vejo um homem entrando com uma bicicleta para dentro desta grande casa arruinada. Não sei o que busca ele, entrando assim pela janela. Imagem dissonante, esta. Dir-se-ia que a única coisa com vida neste espaço belo e decadente é algo que parece não fazer sentido.
Talvez o homem busque, tal como eu, um silêncio puro, um ar limpo. Talvez no interior desta grande casa ele encontre a frescura, o aconchego de uma sombra, a protecção de sete paredes, sete sombras. Talvez procure ouvir o eco da sua respiração e nada mais que isso. Ou nem isso.
No entanto, aí chegado, o homem e a sua inseparável bicicleta, ele irá reparar que não há silêncio absoluto, não há pureza total, nem limpidez perfeita. Há apenas a rarefacção do momento. Há apenas solidão. Há apenas a companhia constante do pulsar do coração. O sangue que corre dentro de nós como um rio azul numa tarde de verão. Quase silencioso. Quase parado.
[Neste verão quente (em duplo sentido), trago aqui ao Ginjal um outro novo poeta, António Barahona. A seguir, uma vez mais, a arte de Pavel Psorcl ocupa-se de nós. Desta vez ele toca Saint-Säens]
Ginjal ao entardecer |
Silêncio é uma palavra impossível.
Não corresponde a nenhuma realidade.
Não há silêncio no cosmos
nem em cada um de nós.
Numa sala sem eco,
entre sete paredes de cimento isolante,
ouve-se ecoar a circulação
do nosso próprio sangue.
[Poema da pag 137 de António Barahona in 'Raspar o fundo da gaveta e enfunar uma gávea']
O silêncio, devido á sua surdez, foi o “grande companheiro” desse génio da música clássica, Beethoven, o mais destacado compositor do período Romântico.
ResponderEliminarQuantos de nós já estiveram em situações de quase silêncio absoluto? Uma vez, há já uns anos, à noite, em plena Serra da Estrela (de regresso de um passeio a sós), sem mais ninguém ali, parei um pouco, desliguei o motor e ali fiquei a olhar o céu estrelado. Pareceu-me uma eternidade, mas não foi. Todavia, nunca mais me esqueço, foi uma sensação de tranquilidade tão grande, como se o meu espírito se tivesse solto e decidisse vaguear por ali uns momentos. Mas, mesmo em situações destas, ao fim de algum tempo os nossos ouvidos começam a captar os sons mais longínquos e mais fracos e aos poucos voltamos á realidade. Mas fez-me bem. Se já tinha consciência de que somos, sou pequeno neste mundo onde vivemos, saí dali mais convicto do que nunca desta nossa insignificância.
Quando dou por aqui uns passeios a pé, até ao fundo das rochas e fico ali sentado a ver e a ouvir o mar, sucede-me quase esquecer o ruído das ondas, lá em baixo e fico numa espécie de silêncio artificial a olhar, como se o estar ali assim, deixando a imaginação á solta, me fizesse esquecer os sons á minha volta.
Este seu outro Blogue ajuda-me a lavar a minha alma inquieta.
É excelente a música que escolhe, bem como a poesia que a acompanha.
P.Rufino
Boa noite Um Jeito Manso!
ResponderEliminarA aragem da noite continuou quente como a que sentiu à tarde. Andei por andou e regressei à pouco. Será que o homem da bicicleta ainda estaria por lá? Se eu soubesse...
Isabel
A very good eye for detail!
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