Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

14 maio, 2013

Um rasgo de Ave a soprar contra Ar muito denso




A jovem mulher retira o chapéu que pousa com cuidado, estende as fitas, alisa-as, e ali fica. 

Depois, por nada, pega numa pequena boneca de trapo, afaga-a com jeito maternal. Dura pouco esse gesto de ave: pouco depois pousa-a com desvelos de mãe. 

Mas fica de pé, solitária, sem objectivo. Despe, então, o longo e rodado vestido, estende-o sobre a cama vazia. Tira os sapatos, tão pesados, e logo ela que gosta tanto de leveza, arruma-os, um ao lado do outro, dois sapatos tristes. Depois puxa para baixo as meias, retira-as, dobra-as. 

Vê-se ao espelho alto no quarto. Agora apenas camisas interiores, roupa de algodão, simples, lisa, branca. Os pequenos seios afloram quando ela abre os atilhos da frente. Deixa descair uma alça. Solta o cabelo. Deixa que o longo cabelo roce ao de leve os mamilos e logo eles se enrijam. Olha-os, rosados, erectos. 

Caminha até à janela. Tanta a solidão, tão rasgados e longínquos os voos com que tanto sonha. Abre os vidros, deixa que a maresia entre, aspira-a, os seios resfriados, desafiadores. Deixa cair as camisas que são feitas de nervuras, rendas, pregas, fitas. Despe depois os pequenos calçõezinhos, tufados, com rendinhas. Fica nua, branca, virgem, em frente do espelho, os longos cabelos pudicamente cobrindo o corpo macio, ainda não profanado. 

Senta-se, então, na pequena mesa junto à janela aberta, deixa que o som do rio se instale junto a ela, deixa que a luz a acaricie. Começa, então, a escrever palavras que lhe saem sem pensar,

Alguns Dias dos outros se separaram
Para com distinção adormecer -
O Dia em que um Companheiro chegou
Ou foi forçado a morrer.


Não escolheu as palavras. Saíram das suas mãos como as folhas nascem das árvores. Lê e reconhece-se nelas, fêmea intranquila, mulher tremendo sobre o arame, fugindo do equilíbrio, atraída pelo abismo, pelo doce tumulto das palavas.

Depois fecha o caderno, pousa a caneta, fecha o tinteiro. Olha-se ao espelho. Depois, sem pensar, sobe para o parapeito da janela, aspira o ar fresco que sobe do rio. E voa.

Ainda hesita, pensa que talvez deva pousar na margem, retroceder. Mas não. De novo levanta voo, livre, branca. E pensa que talvez esta suave sensação seja afinal l'esthétique de la solitude e, sorrindo, vitoriosa, acrescenta para si própria: solitaire mais jamais seul. E voa rasgando o ar, breve traço de liberdade cruzando o horizonte.




[Abaixo da gaivota pensadora temos mais um poema de Margarida vale de Gato e, logo a seguir, mais um momento de recolhimento, a música de Palestrina elevando-se em toda a sua imensa beleza e transportando um abraço para os autores dos blogues onde fui beber algumas palavras e inspiração]



Une mouette au Ginjal



                                            Seria então o esforço para escrever
                                            Sobre o que nos suspende - um traço -
                                            Um rasgo de Ave a soprar
                                            Contra Ar muito denso - breve
                                            O Tumulto, gago o Eco de fêmea
                                            Ímpar, tremendo pelo Arame -

                                            Teu precário equilíbrio - que
                                            Valia? Qualquer Coisa menos
                                            Isto - embora sequer diferente
                                            E até pior - porquanto se
                                            Ressente a solitária Invenção
                                            Do que não se deu a escolher -



                                            ['Emily Dickinson, II' de Margarida Vale de Gato in 'Mulher ao Mar']


4 comentários:

  1. E foi quando um leve bater de asas me despertou do sonho, que percebi que a "minha" gaivota tinha voado de Oslo para, de mansinho, vir poisar no Ginjal, antes de proseguir o seu voo de liberdade.
    Muito obrigado.
    Um abraço

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  2. Belas as suas palavras. Combinam muito bem com a leitura que faço de Emily Dickinson, luminosa, leve, leve, mas também dolente, triste. Inquieta-me e encanta-me, alenta-me. A solidão servida com tanta delicadeza e requinte, por si, por Dickinson, por Margarida Vale de Gato, por jrd; só tenho pena que, às vezes, rompa o amparo estético e seja mesmo "seul". Mas as asas vêm sempre!

    Nunca tinha lido nada de Margarida Vale de Gato (que nome fantástico!). Gosto, mas tenho de ler mais...

    Obrigada

    Um beijinho

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  3. Embora com algum atraso não quero deixar de saudar a chegada da Emily Dickinson aqui ao Ginjal.

    Conhecia-a em Junho/83, quando li o magnífico "Sophie's Choice" do William Styron, que originou o filme homónimo com o qual a também magnífica Meryl Streep ganhou um Oscar.
    O tema é o Holocausto e a escolha dolorosa que uma mãe tem que fazer... e também a poesia da Emily.

    Nunca mais a perdi de vista.
    Tenho os Selected Poems, da Wordsworth Poetry Library, e também imensos dispersos que roubei da net, jornais, revistas, etc.
    Tenho também o livro "A Prisioneira de Emily Dickinson" da Ana Nobre de Gusmão, que recomendo a quem gostar dos poemas da 'menina de branco'.

    É difícil encontrar livros dela, está tudo esgotado.
    Tenciono comprar os 100 Poemas traduzidos pela Ana Luisa Amaral, saído recentemente.
    Entretanto fico à espera de mais aqui no Ginjal, se possível...

    Beijinho e bom fds!

    Antonieta

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    Respostas
    1. Olá Antonieta!

      Bons olhos a vejam!!!! Também gosto da poesia de Emily Dickinson mas como aqui só quero falar de poetas de língua portuguesa, tenho fugido dela e doutros. Acho que a única excepção que abri foi para uma outra tradução de Jorge de Sena.

      Não sabia da tradução de Ana Luísa Amaral, tenho que me pôr em campo. As suas dicas são preciosas.

      Obrigada e vá aparecendo!

      Beijinhos!!!!!

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