Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

03 abril, 2013

Só informe e não humano pode ser o pranto


Esta janela teve, um dia, umas belas cortinas costuradas pelas mãos cuidadosas de uma mulher, que ondulavam com a aragem da tarde. Atrás das cortinas, escondia-se, dantes, essa mulher. Atenta, ouvia ao longe os passos, ouvia que se aproximavam, inquietava-se na sua inocência, corria para uma última espreitadela no espelho. Depois, quando as pancadas se ouviam na porta, puxava a cortina para o lado, mostrava o rosto sorridente, confirmava que era o seu amor, largava a correr para a porta. Abraçavam-se felizes e o tempo era todo deles.

Até que o homem foi para a guerra. Nesses longos meses, anos, a mulher escondia-se do sol, escondia-se na penumbra, chorando, bordando, lendo os aerogramas. Outras vezes sonhava que alguém batia à porta e que era o seu amor, outras vezes temia que alguém batesse à porta para dar uma má notícia. A janela estava quase sempre fechada. Nada havia a ver do lado de fora e a aragem trazia um cheiro a maresia que lhe lembrava o amor longínquo que ela queria afastar para não sofrer, tantas as saudades, tantas.

Até que ele voltou, inteiro. Que bom, que alegria. Tantos que não voltaram, tantos que vinham estropiados. Ele não, ele vinha tal e qual, apenas mais moreno, mais forte. 

Mas, de facto, vinha outro, rude, inquieto. Não a beijava, não dormia, não falava. 

Uma noite despediu-se e partiu num grande navio, que era apenas por uns meses.

Nunca mais voltou. Passaram os anos e a mulher envelheceu, magra, cabelo branco, fraco, toda ela fraqueza, toda ela magreza. Uma vida que não se cumpriu, uma vida corrompida pelo silêncio e pela solidão.

Com o tempo, as cortinas rasgaram-se e ela não as coseu nem as substituíu. As madeiras das janelas secaram e ficaram assim, sem cor, ressequidas.

Um dia os gatos agitaram-se, miavam desgraçadamente. A mulher não tinha acordado. Nunca mais acordou.

Depois foram os vidros que se partiram. 

Assim está hoje a casa. Vazia, ao abandono. Apenas o vento entra e sai, como se fosse o dono. Os gatos por vezes assomam à janela, parecem os mesmos mas são outros, não devem saber nada de quem ali viveu. 

Lá dentro não há nada. Dizem que apenas vultos silenciosos, a sombra de uma mulher, a sombra de um homem. E vento, muito vento, um vento não humano, um pranto, um pranto longo como um piedoso manto.

O mato invadiu a casa. Do chão nascem ervas, no quintal há árvores frondosas. E há pássaros que desfiam as suas penas que o vento leva para muito longe. E o vento que ronda a casa, assobia junto às árvores, parece chamar alguém, parece um canto sem palavras, um canto por onde passam esvoaçando as penas, as saudades de outros tempos, sempre este vento informe, sempre este longo e silencioso lamento.



[Mas talvez um dia um navio páre ali no rio, junto à porta, e dele saia o homem que um dia partiu, talvez ele volte. Para o chamar, um grande intérprete, Jo Brunenberg, toca Volver de Gardel]


Janela do velho casario do Ginjal



                                             Apenas os ventos que sempre amaram a casa rude e retraída
                                             apenas eles assobiam sobre o sítio, ponderosos e longos
                                             assobios, no seu correr desatinado; como
                                             só informe e não humano pode ser o pranto

                                             Manto devido, em que não tocamos



                                             [Poema de Maria Andresen in Livro das Passagens]


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