Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

08 abril, 2013

Escrevo como quando já o escrevi outrora


Chamas-me, falas comigo, encostas-te às amuradas, acolhes-te sob as árvores, debruças-te sobre o rio, espreitas tentando descobrir-me.

Não me vês mas eu vejo-te.

Quando sopra uma leve aragem, sou eu que sopro os teus olhos para secar as lágrimas que disfarçadamente limpas, quando ouves um grito de gaivota, sou eu que passo voando e cantando para ti. Quando vês a sombra de um vulto que passa devagar, de longos cabelos e olhos doces de menina, sou eu. 

Sou eu sempre.

Quando te ocorrem palavras loucas, felizes, douradas, sou eu que guio os teus dedos, quando sorris sem saber porquê sou eu que me sento em frente a ti. 

Sou eu sempre, sempre, sempre.

Pedes-me que nunca te deixe. Que pedido esse. Claro que nunca te deixarei. Claro.

Olha. Estive toda a noite a zelar por ti, mergulhei nos teus sonhos, dancei contigo. Sentiste um calorzinho bom, não sentiste? Era eu, sou sempre eu.

Depois, quando a madrugada despontou, voei e vim até aqui, à beira do rio, vi o nascer do sol, soltei palavras doces no vento. Sentei-me a esta mesa, à nossa mesa e, em silêncio, com a ternura de uma namorada eterna, ensinei-as a voar até ti, amorosas, cheias de luz e de carinho.

Daqui a nada, quando acordares, receberás do princípio e do fim dos tempos - que se tocam, sabes? - palavras aladas, vindas de longínquos astros, nascidas da madrugada do mundo, embaladas pelos meus braços cheios de luz.

Descansa, pois, amor meu. Nunca te deixarei. Junto a ti, serena e suave, serei eu sempre junto a ti.




[Depois de ontem ter escolhido um poema de Gastão Cruz, hoje um de Fiama. Que os poemas de ambos se toquem. A seguir um momento especial, Si dolce è il tormento, numa belíssima interpretação de Uri Caine com Paolo Fresu]


Ginjal e o Tejo



                                            Sentei-me na mesa devagar pensando
                                            que é de manhã agora. Escrevo como quando
                                            já o escrevi outrora. Sem querer, outra vontade,
                                            a do tempo, hoje, faz-me escrever
                                            depois da madrugada. Ainda é
                                            manhã por ele o ser, e sei que, embora
                                            vinda dos astros, eles não são.


                                            ['O ser lírico' de Fiame Hasse Pais Brandão in Revista ler nº123]


*



volto
numa aberta
porque o rio generoso
inventou uma pequena praia
com areia dourada


súbita oferta que agradecemos
onde cabemos apenas nós
e a nossa tristeza disfarçada

e (porque não?) a minha vontade inquieta de me fazer ao mar...


[Poema de 'Era uma Vez' num comentário aqui abaixo]


*



Porque será que meus olhos tanto necessitam
de ver mar ao longe?
Ou pelo menos a água
de um rio
para aí cheirar a sua raiz
Se calhar foi por tanto apetecer o azul
da água ao longe
que meus olhos são claros
e por tanto amar o mar
que meus desgostos
se tornaram destemidos e salgados
e têm
o voo a pique das gaivotas
e o grito ácido
dos pássaros marinhos

Teresa Rita Lopes

Afectos


4 comentários:

  1. ERA UMA VEZ09 abril, 2013


    volto
    numa aberta
    porque o rio generoso
    inventou uma pequena praia
    com areia dourada


    súbita oferta que agradecemos
    onde cabemos apenas nós
    e a nossa tristeza disfarçada

    e (porque não?) a minha vontade inquieta de me fazer ao mar...

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    1. Erinha,

      O seu belo poema já lá está em cima, ao pé de Fiama, a mulher do sorriso de menina, a Poetisa que um dia se fez ao mar.

      Um abraço.

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  2. Cara UJM, o prometido é devido (e divino)
    Sei que não fala dos contrastes da verdura , do dourado solar das areias, do cachecol vermelho, mas fala do azul das águas. Cá vai um poema que com certeza já terá lido, mas reler é sempre do melhor que há, quando se ama a leitura de bons textos e poemas.

    Porque será que meus olhos tanto necessitam
    de ver mar ao longe?
    Ou pelo menos a água
    de um rio
    para aí cheirar a sua raiz
    Se calhar foi por tanto apetecer o azul
    da água ao longe
    que meus olhos são claros
    e por tanto amar o mar
    que meus desgostos
    se tornaram destemidos e salgados
    e têm
    o voo a pique das gaivotas
    e o grito ácido
    dos pássaros marinhos

    Teresa Rita Lopes
    Afectos

    Saúde e felicidades, sempre redobradas.

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    1. A felicidade é ainda maior quando palavras destas vêm pela mão de alguém que aqui chega sempre com tanta estima. Não conhecia, não, este poema. E que belo é e como me identifico com ele.

      (Sim, no outro dia, na exposição da Clarice Lispector, eu estava mesmo com uma écharpe vermelha e sim, falo das areias douradas, das águas azuis, do grito das gaivotas e, sim, acho este poema que aqui trouxe um poema lindíssimo).

      Muito obrigada.

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