Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

05 março, 2013

não te oiço e é como se me achasse dentro de um templo fechado


Chamei-te tanto, tanto, disse-te um por um todos os passos que devias seguir até me encontrares. Mas não vieste. Tanto que te esperei, tanto, tanto, meu amigo. Passavam os dias, passavam as noites, vinha o sol, vinha a chuva, vinha o vento, vinham as estações, os anos, e eu aqui tão só, esperando, esperando. Chamei-te tanto, tanto, meu querido amigo. Não me ouviste nunca? Nunca? Nem um lamento meu chegou até ti? Nem um? Por fim já não tinha forças, já apenas saía de mim um sopro lento. E os pássaros vinham e iam e olhavam-me e era piedade que eu sentia nos seus sábios olhares.

Envolta em silêncio, um tão pesado manto de silêncio, tanto, tanto silêncio, aqui estou tão sozinha. Dirás que foi escolha minha, que poderia ter saído. Bem sei, meu amigo, bem sei. Mas este é o templo em que pensei esperar-te, o templo dos mil labirintos, dos recantos de sombra, dos recantos de luz, o lugar de todos os assombros. Aqui sonhei que um dia virias ao meu encontro. Aqui chegarias até mim, meu amigo, e eu, olhar puríssimo, pele lisa, olhos de água, coração de menina, dir-te-ia palavras de muito amor, palavras inventadas. Assim o sonhei, meu amigo, assim o sonhei.

Hoje a chuva não pára, tenho frio, os meus cabelos longos estão tristes, os meus seios estão trémulos, os meus lábios fecham-se sem esperança e os meus olhos, quase cegos da falta que tenho de ti, choram, choram. Depois de tanto tempo, eis que as forças me faltam, eis que as lágrimas correm como um rio. Não virás. Sei disso.

Há pouco desci do beiral, espreitei do alto das escadas, ouvia passos, um roçar, um respirar. Pensei que podias ser tu, meu amigo, meu amor. E então percebi. Eram gatos, muitos gatos. Também eles perceberam. No alto deste templo, junto às suas arcadas mora uma mulher de outros tempos, sem idade, sem passado, talvez uma louca, talvez. Talvez. É como se já não existisse. Este templo que eu quis que fosse o nosso ninho de amor é agora deles, meu amigo.

Seja.

Quem passa na rua diz que por aqui paira uma alma de outro mundo, outros dirão que é uma santa, ou uma mulher pássaro que vive sem se alimentar, envolta em silêncio. Mas os gatos sabem e eu sei também que é uma mulher, apenas uma mulher, uma mulher que espera o seu amor, uma mulher que espera em vão, que sabe o seu amor não virá mais. Eles sabem e eu sei também que há aqui uma mulher que um dia desaparecerá, se transformará em pó, em nada. E ninguém saberá que existiu. Talvez os gatos, por vezes, parem, olhem para cima, esperando que uma mulher silenciosa de longos cabelos transparentes assome no alto das escadas. Mas só eles se lembrarão de mim.



[Abaixo dos gatos que vieram habitar o templo em que a mulher pássaro espera, um poema de um novo poeta, André Tomé e, logo a seguir, mais uma grande interpretação. Desta vez Martha Argerich não está sozinha e toca Mozart.]



Gatos no velho casario do Ginjal


                                 não te oiço e é como se me achasse dentro de um templo fechado.
                                 o silêncio é a obra através da qual se descobre a memória
                                 e à falta de toque só o teu nome pronunciado e a fé na tua aparição
                                 ilumina as arcadas.
                                 a tua ausência tem-me o corpo vazio, falta-me o milagre da presença
                                 poderia chamar-te deus
                                 estás aqui latente
                                 mas não estás.



                                 ['Meditação' de André Tomé in Insula, belo livro de poemas que dedica aos pais]

4 comentários:

  1. Cara UJM,
    Nem sempre o ser que se espera, nos chega ao ancoradouro. No entanto, a esperança deverá manter-se, pois a ausência do objecto aguardado vivifica-nos a coragem de existir, na ânsia que o objecto amado um dia, não se sabe quando, chegue…nem que seja no seu aroma, alado no vento.
    Nem só o que vemos e palpamos é sentido, pois os sentidos também se deleitam com as abstracções que nos vão chegando, ao sabor dos nossos desejos.

    Votos de muita saúde…e esperança imorredoira!

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    1. Olá dbo,

      Ficciono. Ficciono ao sabor das palavras que os Poetas escrevem. Gosto de ficcionar, de sonhar.

      E o aroma do sonho é suave e traz-me outras palavras que chegam voando pelos ares, nem sei de onde. As abstracções são, por vezes, muito sentidas, sim.

      E tenho sempre muita esperança: que a alegria de viver e a beleza dos meus sonhos não me falte. Nem a mim nem aos que me são queridos, nem aos meus leitores que me são também muito queridos.

      Muito obrigada pelas suas palavras sempre tão boas de ler.

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  2. Gosto de gatos e eles sempre vão arranjando um sitio para viver,
    alguma coisa para comer e vai havendo sempre quem também se lembre
    de lhes dar de comer. Gostei do seu texto, porque soube bem ficcioná-lo.
    É pena que haja pessoas que não tenham quem lhes dê de comer como aos
    gatos, não é ficção,é simplesmente uma triste realidade.
    Bj.
    Irene Alves

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    1. Olá Irene,

      Tem muita razão. Como se vê na fotografia, há caixas e pratos com comida. Há, de facto, quem lá vá levar-lhes comida - e isso, é bem verdade, nem sempre acontece com as pessoas. Tempos desolados, estes.

      Bjs, Irene!

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