Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

11 fevereiro, 2013

Mark Rothko elevava as cores à ignorância de Deus


Um dia olhaste o rio e disseste que querias ver o seu azul reflectido nesta parede. Fui buscar o azul mais igual que encontrei. Depois disseste que gostavas que a parte de baixo fosse da cor da luz do sol à hora do maior calor, aquela hora que traz as gaivotas até aqui, em busca de sombra. Fui, então, buscar o amarelo mais dourado que encontrei.

Chegaste-te para trás, olhaste de lado, de frente, de perto, de longe, semicerraste os olhos e disseste, a meio deverá haver uma linha branca, a linha do distante horizonte. Fui buscar o branco mais intangível, um rasgo de luz invisível. 

Depois, de dia, enquanto dormias, pintei para ti esta parede. 

Quando acordaste, antes do anoitecer, trouxe-te até aqui.

Nada disseste mas as lágrimas começaram a correr-te, depois ajoelhaste sobre as águas do rio, juntaste as mãos, agradeceste comovida, trouxeste até às minhas mãos o rio e o céu e o sol e a lonjura

Tudo eu fazia por ti. Durante muito tempo, quando acordavas ao entardecer ou a meio da noite quando os gritos das gaivotas te traziam até ao rio, eu via-te junto a esta parede, rezando. 

Mas isso foi há muito tempo. 

Um dia saíste e não mais voltaste, não sei se voaste para longe ou se entraste nos labirintos do fundo do mar. 

Por vezes, de madrugada ainda penso que vejo um vulto ajoelhado junto a este teu altar mas talvez seja apenas um sonho, ou um daqueles anjos que habita estas velhas casas. 

Agora as tintas estão gastas, têm líquenes, vestígios de maresia, restos de tristeza, têm as minhas lágrimas, e têm as palavras que, em silêncio, lá deixo todos os dias para ti. E todos os dias, de manhã, junto a esta parede, eu procuro uma resposta, uma palavra, um sinal de ti, qualquer coisa que alimente o resto dos meus dias; mas apenas encontro o silêncio que habita entre os apelos que eu aqui te deixo.



[Abaixo do belo poema de Maria Andresen que fala de um poeta que me prende para além do que é racional, Mark Rothko, o piano maravilhoso de Bach nas mãos desse fantástico menino, David Fray, que tem apenas 31 anos]


Parede do velho casario do Ginjal



                                               Os papéis ardem como arde a casa
                                               e ardem cidades que dentro de mim guardava
                                               em nomes alheados que articulo como
                                               prece levantada ao encontro dos acasos. Mark Rothko
                                               elevava as cores à ignorância de Deus


                                               [Poema de Maria Andresen in 'Livro das Passagens']
                                     

4 comentários:

  1. Não sei se o Expressionismo Abstracto de Rothko patenteado nas formas rectangulares empilhadas chega ao alcance de Deus.
    Acho-o mais próximo dos homens.
    Abraço

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    1. Olá jrd,

      Um quadro de Rothko é isso: rectângulos empilhados.

      Mas é também a simplicidade da forma, a pureza inocente da cor, a luz que parece misturar-se (ou desaparecer nas últimas telas), o nada no qual mergulhamos.

      Não sei explicar o que me prende nos quadros de Rothko. Reconheço que parecem uma coisa de um amador pouco cuidadoso. E, no entanto, comovo-me perante eles. Há um silêncio que me prende, que me faz tentar perceber o que há quando não há quase nada.

      É o que sei (já que pouco sei de como se alcança Deus...)

      Um abraço jrd e muito obrigada pelas suas palavras sempre tão oportunas e certeiras.

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  2. Esta parede parece uma pintura!
    Admirável!

    Bj

    Antonieta

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    1. Olá Antonieta,

      É uma parede que deve estar a um metro do rio. É uma parede com tintas gastas, só isso. Mas eu que me deixo encantar pela parede, fotografo-a vezes sem conta (o meu marido passa-se comigo... ele quer andar com um certo ritmo e eu estou sempre a parar, encantada com tudo). E como a parede está muito rente ao rio, aqui cheira sempre a maresia e eu gostava que houvesse fotografias com cheiro para eu poder transmitir o que sinto quando lá estou.

      Um beijinho, Antonieta!

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