Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

12 fevereiro, 2013

É bom sondarmos os abismos que nunca vão cicatrizando


Atravesso as águas, os lagos, deslizo pelos rios, busco o oceano. Levas-me e eu vou. Por ti eu vou. À nossa frente voam as gaivotas, mulheres como tu, e mostram-nos o caminho. Aqui vamos levados por um cortejo de pássaros de longas asas, aqui vamos, eu e tu e mil asas brancas.

Para trás deixo os veleiros, os lugares habitados, a fantasia, por ti deixo tudo, não olho para trás.

Que sei eu de abismos, de labirintos, de caminhos secretos? Que sei eu das linhas que o teu coração percorreu antes de mim? Que sei eu? Nada. Mas nada quero agora saber. Antes de ti eu não era nada, era apenas um esboço. Por isso, para que quereria eu saber dos caminhos que, então, percorrias até chegares até mim? Chegaste e só isso me interessa.

Queres que te ouça, tens muitas vidas para me contar, tens cicatrizes para curar. Mas eu trato as tuas cicatrizes sem querer saber o que as provocou. Dizes-me, ouve, sangrei, houve tantos rasgos no meu coração, junto a mim havia um rio de sangue, quero que saibas. Mas eu não quero saber. Por ti, eu ignoro a tua vida antes de mim, esqueço a minha vida antes de ti, deixo tudo, tudo, porque só os caminhos que agora atravessarei contigo me interessam.

Mas tu insistes, escuta, eu quero que saibas que não escutei avisos, quero que saibas que eu não era eu. Mas eu digo-te, shiiiiu..., agora já chega, não digas nada, nada, agora quero apenas que me leves. Por ti percorrerei todas as águas, por ti e contigo serei lago, rio, por ti atravessarei todos os oceanos, por ti irei sem saber para onde. Por ti, meu amor de todas as águas.




[Abaixo do poema de David Mourão-Ferreira, poeta a quem eu tanto gosto de ouvir dizer poesia, senhor de uma voz quente, quente e bela como é quente e bela a sua poesia (e, se escrevo no presente, não é engano: é mesmo intencional), poderão ouvir mais um belíssimo momento de David Fray. Céus, ando encantada com este miúdo, que bem que ele interpreta. Nunca agradecerei suficientemente ao Leitor que mo deu a conhecer, tal como agradeço a todos os outros com quem tanto aprendo]


O Tejo hoje em Belém, junto ao espelho de água 



                                           Quantos em ti lagos e rios
                                           Quantos em ti os oceanos

                                           Água vermelha que aos ouvidos
                                           traz o aviso
                                           de nenhuns campos

                                           É bom sondarmos os abismos
                                           que nunca vão cicatrizando

                                           E ao som da água pressentirmos
                                           de onde provimos
                                           aonde vamos



['Poema XXV' de David Mourão-Ferreira in 'O corpo iluminado']

4 comentários:

  1. Esta mulher
    no centro
    do corpo traz uma ilha

    Esta mulher
    um templo
    no centro da sua ilha

    Esta mulher
    o centro
    já do templo não da ilha

    Esta mulher
    oh templo
    de tudo na minha vida.

    Axis Mundi, II
    David Mourão Ferreira

    Este é o poema nr. 25 do meu cd.
    É este que tem?

    Bj

    antonieta

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    1. Olá Antonieta,

      Não tenho aqui, neste momento, o CD com o David Mourão-Ferreira a dizer os seus poemas mas se calhar só há mesmo esse. De qualquer forma, quando falei na sua voz, nem estava a pensar no CD. Quando eu era miúda havia um programa dele na televisão, talvez na RTP 2. Eu adorava, adorava. E adorava tudo e, claro, também, quando ele dizia poesia. Era um sedutor, um poeta sedutor e era o diseur perfeito.

      Já aqui coloquei esse poema há algum tempo, acho eu, talvez numa altura em que andava ainda contida.

      Um beijinho.

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  2. Feliz de quem, no espelho da água, apenas tem as imagens da ternura.
    ;)

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    1. Pois, é bom. Estava frio, mas estava com os miúdos e com eles a gente nem tem tempo para sentir frio. E eles e os veleiros a sério, e os veleiros a brincar, e as gaivotas e tudo aquilo não me deixa pensar em mais nada que não em ternuras e afins.

      :)

      Um abraço.

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