Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

26 fevereiro, 2013

Dai-me só mais este passo, meu amigo


Depois de passares uma porta aberta encontrarás, meu amigo, um longo corredor. Nesse corredor encontrarás muitas portas. Não entres em nenhuma dessas salas porque estão escuras, sujas, habitadas por seres sem olhos, sem alma. 

Continua por esse corredor, meu amigo. Em frente encontrarás uma escada. Sobe por ela. Parecer-te-á que não vai dar a lugar nenhum, mas vai por elas. 

Depois, quando o céu se abrir sobre ti e uma luz imprevista descer pelo teu corpo, vira para um dos lados.

Anda até que o céu volte a desaparecer. Acharás que está escuro, sentirás medo pelo desconhecido. Mas entra pela escuridão. Não te importes, meu amigo, se te sentires tocado, puxado, acariciado. São mão abandonadas que não pertencem a nenhum corpo, fiapos de vestidos que em tempos vestiram belas mulheres ou sedas que taparam virtuosos regaços. Não te deixes prender, não deixes que se teçam teias invisíveis em tua volta. São perigosos os laços que se tecem na escuridão, meu amigo. Continua. 

Vais sentir frio. Entra nesse vazio, nesse poço sem paredes, sem fundo, sem céu. Ouvirás, meu amigo, o bater de asas, gritos de aves perdidas, alguém que soluça. Mas nada verás. O teu sangue quererá soltar-se do teu corpo, inquieto o teu sangue, inquieta a tua respiração e sentirás um frio e um medo e um grito que se prende no teu peito gelado. Mas continua, meu amigo, continua.

Sentirás que as tuas pernas ficam geladas e não saberás se entraste no mar, se mergulhaste no interior mais desolado da terra, só ouves uivos, lamentos, tenebrosos gritos.

Então, aos poucos, meu amigo, começarás a ver no escuro mas só verás sombras que se movem e não saberás se são pessoas, se são bichos, se são anjos abandonados. Continua.

Depois, se conseguires passar por tudo isso, estica os braços, deixa que deles se soltem asas, e vem até mim, voa, voa sem medo, meu amigo. Estou logo ali. Abre essa última porta, essa que está já tão perto do céu. Não estranhes se ela ranger. Há muitos, muitos anos que por ali não passa ninguém. Ninguém, meu amigo. Assim tenho eu vivido.

Ver-me-ás, então, envolta em luz. Estou à tua espera e terei todo o tempo do mundo para ti. Aí, nesse ninho iluminado onde me encontro, não existe nem dia nem noite, nem passado nem presente, não há nada, nada, só eu que te espero desde que um astro lento e primitivo por aqui passou, eu desde sempre tua, para sempre tua. Vem. Vem até mim. Dai-me só mais estes últimos passos, meu amigo. Peço-vos. Meu amor.



[Abaixo de mais um belo poema de Catarina Nunes de Almeida, poderão ouvir mais uma grande interpretação de Rostropopovich, desta vez tocando Saint-Saëns]


Porta que dá para muitas portas no Ginjal



                                             Dai-me só mais este passo, meu amigo,
                                             às escuras às curvas
                                             pelas ervas abaixo.
                                             Dai-me desse certeiro espinho desse derradeiro laço
                                             às escuras às escuras:
                                             só mais esse poço primitivo
                                             quase dia:
                                             esse pescoço implorando longas cordas.

                                              Alguém que atire a primeira perna.
                                              Alguém que diga
                                              desta espádua beberei.
                                              Que as mãos trazem astros lentos
                                              e não conhecem os desígnios dos relógios.


                                              [Poema de Catarina Nunes de Almeida in Bailias]
                                           

4 comentários:

  1. Que bom trazer aqui de novo o José Gomes Ferreira, o poeta que, segundo o leitor dbo, transforma os cardos da vida em frutos de prazer.
    Eu não diria melhor!

    E que a nossa 'deusa de sensibilidade de oiro' continue a produzir, para nosso deleite, belos textos e fotos.
    Perfeita a do caçador caçado!

    :)

    Antonieta

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    1. Olá Antonieta,

      O meu ex-namorado poeta adorava José Gomes Ferreira e, ao princípio, era influenciado por ele. E chegou a enviar-lhe poemas para pedir a opinião. Era um poeta das coisas comuns mas cheio de sensibilidade, sensualidade, irreverência.

      Fico contente que também goste.

      Quanto a eu continuar a produzir penso sempre que um dia destes isto se vai extinguir, que não me vai ocorrer coisa nenhuma. Mas depois ponho-me aqui e as ideias vêm. O diabo é o sono... A minha filha diz que escreva dia sim, dia não em cada um dos blogues e se calhar é o que tenho que fazer pois durmo pouco, chego a esta hora com muito sono, nem sei como é que as palavras se formam.

      Muito obrigada por tudo, Antonieta. Beijinhos.

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  2. Um final sublime. Verdadeiramente surpreendente.
    Um abraço

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    1. jrd,

      Tenho sempre um certo receio de aceitar palavras assim, que não me sejam devidas. Quando leio que outras pessoas escrevem, rasuram, alteram, limam, burilam, aparam, eu sinto admiração porque vejo que há ali um esforço, um anseio pela perfeição, gestos de apuro que devem ser louvados. Eu não sou assim. Isto sai sei lá eu de onde, escreve-se assim e depois eu acabo e parto para outra. Não sei se sou eu que escrevo ou se isto aparece escrito. Não estou a armar-me em modesta porque o não sou. Estou a ser sincera.

      Não obstante, é claro que gosto de perceber que gosta do que eu escrevo e gosto que os meus leitores aqui venham para ver o que há de novo e se sintam bem. E isso basta-me. O que venha para além disso, é sentido como um ganho inesperado.

      Um abraço, jrd!

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