Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

08 janeiro, 2013

se conseguires entrar em casa e alguém estiver em fogo na tua cama


A minha avó preocupava-se muito, tinha sempre medos, medo que eu caísse, que eu me magoasse, que eu não estudasse, que eu não fosse bem sucedida por estudar tão pouco, tinha medo que eu não tivesse sorte, que os vizinhos não dissessem bem de mim. Queria proteger-me de tudo. 

E eu, cabrita maltês, queria era correr pelos campos, brincar ao lencinho queimado no meio do mato, brincar às escondidas atrás das pedras, dos arbustos, jogar ao prego, andar a monte pela serra.

A minha outra avó não queria saber das opiniões dos outros para nada, eu que fizesse o que queria. Esta era a mãe da minha mãe mas, nas férias, a minha mãe ficava mais descansada comigo na casa da minha outra avó, porque a sogra tentava tomar conta de mim enquanto a mãe não se importava que eu andasse toda a tarde fora de casa. 

Mas eu gostava mais de estar com a mãe da minha mãe. Ela gostava muito de ler, tinha sempre muitos livros e revistas e deixava que eu lesse tudo o que quisesse, e gostava de ouvir as notícias, tinha opinião sobre a actualidade. Era uma mulher corajosa. Viveu sozinha, viúva, desde nova. Quando se foi, há pouco tempo, descobrimos alguns papéis. Uns eram a correspondência dela e da mãe dela com os primos. Um foi presidente da república. Escreviam coisas muito engraçadas uns aos outros, um deles fazia versos muito divertidos e tinham letras invulgarmente bonitas.

Do meu avô, pai da minha mãe, só me lembro de o ir esperar, muito pequena, ao pé do portão e dele me levar às cavalitas para casa. Era muito alto, muito louro, olhos muito claros. A minha mãe saíu a ele. Foi-se embora muito cedo, num acidente, teria eu uns dois ou três anos e a minha mãe e a minha avó iam morrendo de desgosto. Fizeram tudo para eu não dar por nada. Não dei. Mas fiquei a gaguejar durante algum tempo. 

O meu outro avô, casado com a minha avó cheia de medos, era um homem muito tranquilo que, no tempo livre, gostava de pescar e de tratar da terra. Nunca se zangava e tinha muita paciência para mim e para a minha avó. Eu andava sempre atrás dele enquanto ele andava a sachar e a dispor cebolinho, alhos, feijão verde de trepar, tomate, morangos. Eu regava ou, pelo menos, abria a torneira e achava que o ajudava. Ele chamava-me para eu o ajudar e eu ficava muito contente. A minha avó não queria porque eu me sujava toda, porque não tinha jeito nenhum isso. Mas ele não se importava com a opinião dela e eu também não.

A minha mãe tinha um irmão mais novo, parecido com a minha avó, cabelo escuro, olhos castanhos esverdeados, de que gostava muito e de que eu gostava tanto que quis que ele fosse meu padrinho de casamento. Lia muito, muito. Sabia tudo. E via todos os programas de divulgação científica, cultural e de política. Estava sempre muito bem disposto. Ria muito, falava muito alto, era um excelente conversador. Nunca o vi zangado. Tudo para ele era simples, agradável. Quando era novo pintava. Pintou o meu retrato. Foi-se embora no início do ano passado. A minha tia perguntou-lhe, no dia em que se despediu dele, porque é que ele a tinha deixado tão cedo. A minha mãe não foi capaz de ir, estava devastada. 

Quando vejo as fotografias de um verão, não há muito tempo, estava ele e a minha avó no meio de nós. Estavam todos sentados, in heaven, pais, filhos, netos, bisnetos, trinetos, muita gente sorridente, conversando. 

Os meus outros avós tinham partido não muito antes.

Mas regressam muitas vezes, todos. As minhas memórias têm-nos lá dentro. Gostavam muito de mim, tal como eu gostava muito deles. Continuam a sorrir, a conversar, a minha avó continua a apoiar-me, o meu tio continua a ensinar-me. Sentamo-nos ainda em volta, nas tardes de verão, outras vezes vou regar com o meu avô, ouço os cuidados da minha outra avó. Estão todos ainda muito perto de mim. Dentro de mim. Voam dentro de mim.



[Logo a seguir ao poema do Al Berto, é tempo de espantar tristezas. Maria João e Mário Laginha, num momento feliz, espalham a música sobre a nossa pele]



Avistados do Ginjal, navios de diferentes portes e usos no Tejo
É como se partissem mas não partem, estão sempre aqui, no rio, ou eles ou outros por eles



                                      se conseguires entrar em casa e
                                      alguém estiver em fogo na tua cama
                                      e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho
                                      e do tecto cair uma chuva brilhante
                                      contínua e miudinha - não te assustes

                                      são os teus antepassados que por um momento
                                      se levantaram da inércia dos séculos e vêm
                                      visitar-te

                                      diz-lhes que vives junto ao mar onde
                                      zarpam navios carregados com medos
                                      do fim do mundo - diz-lhes que se consumiu
                                      a morada de uma vida inteira e pede-lhes
                                      para murmurarem uma última canção para os olhos
                                      e adormece sem lágrimas - com eles no chão.


                                      ['incêndio' de Al Berto in Horto do Incêndio]


14 comentários:

  1. Boa Amiga,

    Gostaria de ter o dom da palavra escrita para, nesta altura, poder escrever as palavras certas...

    Não o tendo, apenas posso enviar-lhe um grande, enorme, sentido abraço de amizade...

    Antonieta

    p.s. Coincidência ou não, esta noite andei passeando aqui pelo Ginjal, e emocionei-me muito com este poema do Al Berto (sabe como ele é especial para mim), e com o que escreveu em 13/07/12 sobre os Manes, os deuses do lar que velam por nós.

    Que tudo corra bem com a sua amiga!

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    1. Antonieta,

      São dias, momentos. A minha energia e boa disposição vacila quando alguém de quem gosto se vai abaixo.

      A minha amiga foi operada (ao cérebro), está nos cuidados intensivos, dizem-me que está estável. E desejamos todos que não tenha havido danos. Estou horrorizada com isto. Quando coisas assim acontecem a quem já viveu muito e tem as artérias fraquinhas, ou a quem tem vida de risco, fumando e bebendo muito, hipertensão, coisas assim - agora a uma pessoa sem doenças, saudável, sem stresses, uma vida do mais normal que existe, aí custa muito a perceber.

      Mas estamos todos a torcer por ela e ela sempre foi calma e optimista e acho que isso ajuda, mesmo no estado em que está. Vai ficar boa, com certeza.

      Obrigada pela delicadeza das suas palavras.

      Quanto aos meus avós e ao meu tio, sempre foram muito queridos e assim os guardo dentro de mim.

      Um beijinho, Antonieta.

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  2. Jeitinho,
    que post tão doce, com tanta gente bem disposta à sua volta só podia ser uma optimista.
    Acho que a jeitinho deu pela partida do seu avô, senão não teria ficado a gaguejar,há coisas que nos tocam tão profundamente, inconscientemente, mas ficam lá.
    Espero que corra tudo bem com a sua amiga.
    Beijinhos Ana

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    1. Olá Ana,

      Sobre o estado de saúde da minha amiga já comentei acima. Estamos todos muito apreensivos mas com muita esperança. Seria injusto demais se alguma coisa de mau persistisse ou acontecesse.

      Os meus pais dizem que eu sabia tudo, percebia tudo. E que eles estavam todos tão desgostosos que me puseram a passar uns tempos com a minha avó paterna. E dizem que eu nunca mais perguntei pelo meu avô, nem perguntei porque é que a minha avó estava de luto (que usou até eu ser quase adulta). Devo ter percebido, acho que sim, mas devo percebido que era coisa grave demais e, apesar de ser tão pequenina, devo ter achado que o melhor era não falar nisso. E estranhamente, eu que antes falava pelos cotovelos, comecei a gaguejar, até me levaram ao médico. Depois passou.

      Coisas da vida da gente...

      Muito obrigada pelas suas palavras.

      Um beijinho, Ana

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  3. Deixo-lhe um abraço. Compreendo a saudade de que fala e a percepção de que os nossos entes querido, que já partiram, velam por nós, acompanham-nos. Continuam a habitar o nosso coração.

    Espero que a sua amiga recupere do seu problema de saúde.

    Mais uma vez, receba um abraço amigo.

    Um beijinho

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    1. Olá Leitora Fantástica de A Matéria dos Livros,

      Agradeço e sinto o seu abraço. Racionalmente sabemos que ninguém é eterno e racionalmente podemos ver que uns vão mas chegam outros. Mas por vezes olha-se com saudade as fotografias em que já tantos partiram.

      Lembro-me muito bem de um dia, no verão, in heaven, em que conseguimos juntar-nos os primos todos, mesmo os que vivem mais longe (e que, geralmente só nos juntamos em casamentos ou enterros) com os filhos, e com os tios e os meus pais e ainda com a minha avó materna. Na altura alguns dos filhos dos meus primos eram muito pequenos e aquilo foi reboliço tremendo, os miúdos fizeram toda a espécie de traquinice a acabaram completamente sujos. Mas os meus primos são uns bem dispostos, pouco se importavam. A minha prima que há uns dois meses teve agora mais uma bebé é moderna, gira, eu acho-a parecida com a Julia Roberts, e é calma, zen, e eu dou-me muito bem com ela e, quando estamos juntas, falamos ininterruptamente. O irmão dela, meu primo, falava com o meu marido ou com o meu filho; a mulher desse meu primo que é uns vinte e tal anos mais nova que ele falava com a minha filha; o meu tio conversava alto, com o meu pai ou com todos em geral e ria como sempre; a minha avó estava numa boa como sempre estava, não havia confusão que a incomodasse; a minha mãe e uma das minhas tias conversavam também na maior das animações porque são amicíssimas. E, por aí fora. Lembro essa tarde de verão, debaixo do telheiro, como uma tarde particularmente feliz. E quase parece que foi este verão.

      Quanto à minha amiga, como já referi acima, estamos todos desejando saber que está bem, que não sobrevieram danos. Para já está estável e acho que isso é bom. A vida tem destas coisas e penaliza, por vezes, quem não o merece nem um bocadinho. Ainda me custa aceitar uma coisa destas.

      Um beijinho, Leitora.

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  4. Amiga:
    Acho que descobri o que nos liga. Esta sua história, fez-me pensar nisso. A necessidade de sentir que os nossos mortos voltam sempre. O sentir-lhes o cheiro, ouvir as vozes, ver os olhos, sentir as mãos deles nas nossas. O meu marido acha doentio, eu lembrar-me de frases, risos, momentos de outrora. Eu costumo dizer, que enquanto eu viver, eles vão estar vivos. Sei que entende o quero dizer. Estou sem grande paciência para escrever. Continuo sem vontade para nada, com a cabeça cheia de problemas. Hoje consegui comentar. Deve estar uma grande confusão, mas se reler, apago.
    Desculpe.
    Gosto muito do Al Berto.
    Abraço grande da
    Mary

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    1. Olá Mary,

      Tenho que lhe dizer que fico especialmente contente por vê-la por estas bandas. Tão bom.

      Como sabe, sou toda 'para a frente', pouca dada a saudosismos, nada de dizer que 'no meu tempo é que era', etc. Mas isso não significa que não tenha junto a mim a recordação muito próxima, muito querida, destes meus tão próximos. Estão junto a mim, gostaram tanto de mim e eu deles que não posso deixar que se vão da minha memória. Guardo os seus sorrisos, os seus gestos de afecto, as suas palavras dentro do meu coração.

      O que escreveu não está confusão nenhuma. Gostei até bastante de ler.

      Um beijinho, Mary e vá aparecendo porque já sabe que gosto muito de a ter por cá!



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  5. Muito bonito! Feliz da Avó que consegue falar com tanta ternura dos seus próprios Avós.

    Abraço

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    1. Olá jrd,

      Agora que me diz isso, fico aqui a pensar que tomara que os meus netos gostem tanto de mim como eu gostei dos meus avós. Aquela minha avó que se preocupava com tudo e que por vezes me maçava um bocado com tantos cuidados, sofria muito de artroses e eu lembro-me muito bem de, logo de pequena, me preocupar também muito com ela. O médico prescrevia banhos de sol e eu mal despontava o sol ia logo chamá-la para ela ir apanhar sol. E recomendava que usasse luvas não fosse o frio fazer-lhe mal. Quando já era mais velha e eu adulta, ela dizia, comovida, que eu tudo fazia para que ela nunca tivesse dores nas mãos ou nas articulações em geral. E é verdade. eu preocupava-me sempre muito mais com ela do que com a outra minha avó com quem, afinal, me identificava mais. Mas acho que o afecto é assim mesmo, vário, adequado a cada um.

      Guardo muitas, muitas, lembranças de todos eles e todas boas.

      Gostei muito do que escreveu.

      Um abraço, jrd.

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  6. Amiga,
    Belo texto, que família maravilhosa a sua...É verdade que aqueles que amámos e que nos deixaram, continuarão para sempre nos nossos corações.
    O corpo humano é realmente muito frágil, mas nós não pensamos muito nisso e ainda bem!!
    De um momento para o outro tudo muda.
    Desejo que a sua amiga recupere rapidamente e que tudo não tenha passado só de um susto.
    Beijinho Grande.
    MCP

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    1. Olá MCP,

      Tem razão, o corpo por vezes é imprevisível e injusto - mas não vale a pena atormentarmo-nos com isso quando estamos bem. As pessoas que sofrem de hipocondria sofrem como se estivessem doentes e isso é péssimo. Por isso, é verdade, mais vale viver bem a vida enquanto a temos, enquanto ela tem qualidade.

      Mas uma pessoa acontecer-lhe um drama destes, sem mais nem porquê, é uma coisa horrível. Mas acredito que ela vai superar isto.

      A minha família é uma boa família. Penso que herdei de todos eles a maneira de ser descontraída. E da minha avó que não era descontraída herdei as dores nas articulações... (ou herdei dela ou é de andar sempre com crianças ao colo...)

      Um beijinho, MCP, gosto sempre muito de ler as suas palavras.

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  7. Olá UJM,
    Hoje vim visitar o seu Ginjal, pois tive o pressentimento de que iria encontrar um belo texto, a brotar docemente do seu coração, e aconteceu mesmo. Que bonitas e sentidas as memórias que partilhou connosco dos seus tempos de infância, passados na companhia dos seus Avós e como estão tão vivas dentro de si!
    Também gostei muito do poema de Al Berto, pois imortaliza a memória dos nossos antepassados, aqueles com quem partilhámos tanto amor em vida e que continua vivo, dentro de nós, para além da sua partida.
    Espero que a sua amiga supere todo o problema de saúde e que em breve esteja entre os amigos, com a mesma vitalidade e alegria de viver que lhe conhece. E vai recuperar mesmo, porque é preciso!
    Um grande beijinho, e obrigada por esta partilha, tão especial.
    maria eduardo

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    1. Olá Maria Eduardo,

      Muito obrigada pelo que me diz. De facto, gosto muita da minha família, abençoo a família que tenho. Com avós, tios, primos, e, claro, pais, filhos e netos, há sempre um ambiente de afabilidade. Somos todos frontais, dizemos o que pensamos, exteriorizamos o que pensamos e sentimos e, depois, está sempre tudo bem.

      Faz-me impressão as famílias em que ninguém critica, ninguém fala com medo do que os outros pensam e que, com tanta reserva, acabam por existir ressentimentos. Na minha família é tudo pão, pão, queijo, queijo - e haja alegria.

      Quanto à minha amiga, sabemos agora que se ficou agora a saber que era uma bomba relógio que ela tinha dentro dela, sem nunca ter dado nenhum sinal. Só deu no dia em que rebentou. Hoje veio a notícia que a iriam retirar do coma induzido. Tomara que esteja tudo bem com ela, que a operação tenha limpo o sangue que se derramou. Uma coisa assustadora, não é? A pessoa pensa que é saudável, que não tem qualquer problema de saúde e, depois, acontece uma destas. Mete medo.

      Um beijinho, Maria Eduardo, e eu é que agradeço que esteja aí desse lado.

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