Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

03 janeiro, 2013

Nunca começámos do chão e agora é tarde


Como se começa um amor? Do chão? Pelos meios sorrisos, pelos olhares falsamente envergonhados mas, de facto, descarados? Pelas meias palavras, pelas mãos que inadvertidamente se tocam (e alguém acredita que é inadvertidamente...?), pelas pernas que, a medo, se aproximam? 

É assim? Tem que ser?

Pelos bilhetinhos, pelas mensagens? Pelas noites sem dormir, inquietas? Pelas saudades desatinadas? Pela vontade de ver, rever, tocar o outro?

Por passeios enamorados à beira rio, sob a sombra cúmplice das árvores?

Por um primeiro abraço, ainda hesitante? Por um primeiro beijo, ainda inocente? 

Por uma sugestão de intimidade? Por uma insinuação indecente, inocente?

Se não for assim, não crescerá de forma segura e duradoura?

Não sei. Não sou pessoa para dar lições. 

O que sei é que nunca é tarde. Mesmo que se comece pelo meio, até mesmo pelo fim, mesmo que se comece com sexo, saliva, fogo tresloucado, mesmo que seja, no início, uma paixão sem rede, está-se sempre a tempo de recuperar um primeiro e inocente beijo, um caloroso abraço, as mãos enlaçadas, uma flor, um sorriso. 

Nunca é tarde. A menos que se estejamos a falar de desistentes. A erva cresce depressa, sim, e fica alta, sim. E, por isso mesmo, vos digo: a erva alta, macia, é uma óptima cama.



[Abaixo do melancólico poema do melancólico Pedro Mexia, encontrarão um momento luminoso. A canção, em si, não tem nada a ver com as palavras que por aqui pairam mas, como poderão ver, é o encontro feliz de três seres especiais: Bernardo Sassetti, Nancy Vieira e Rui Veloso]


No pátio da Fonte das Pipas no Ginjal



                                                    Quando decidimos tomar o mundo de assalto
                                                    não sabíamos nada um do outro
                                                    e as ramagens das árvores
                                                    quase tocavam a tua janela.

                                                    Quando desistimos de tomar o mundo de assalto
                                                     não falámos disso
                                                     e ouvimos discos de 33 rotações.

                                                     Nunca começámos do chão
                                                     e agora é tarde.
                                                     A erva cresce depressa
                                                     e em breve
                                                     é muito alta.


                                                     ['Assalto' de Pedro Mexia in 'Menos por Menos']

6 comentários:


  1. Ai, UJM, eu acho que é tudo isto, é um sem número de pequenas-grandes coisas, de situações que nos levantam do chão até às alturas do encantamento.

    As perguntas do seu texto fazem-nos tomar consciência de tudo o que estaremos a perder pela não renovação destes votos, destes desejos que nos projectam no âmago do outro.

    Depois, é como tudo, conforme o momento, a emergência, cada um escolherá a erva alta ou o chão duro.

    Bjs

    Olinda

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    1. Olá Olinda,

      Um poema é sempre aquilo que cada um ler nele. Eu li o que li e, tendo lido assim, deu-me para escrever isto. E gostei de ter escrito até porque acredito mesmo na recriação, na reinvenção, no ressurgimento.

      No entanto, soube esta tarde que o poema se insere num conjunto dedicado à amizade no masculino, amizade e não amor. E, tendo sabido isto, agora já fico um bocado sem jeito...

      No entanto, poema que é poema tem a versatilidade de se adaptar a múltiplas leituras e, portanto, fico com a minha. E, assim, pensando em amores, deixo-me ficar por aqui, perto da cama de erva macia.

      Um beijinho, Olinda.

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  2. Querida UJM,

    É possível, sim, que a erva alta seja uma boa cama, mas na minha opinião, nada como começar do chão...
    Óptimo fim de semana.
    Beijinho Grande.
    MCP

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    1. Olá MCP,

      Fez-me rir. Começar do chão é um bom conselho (apesar de talvez mais duro).

      Um bom fim de semana para si também.

      Um beijinho!

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  3. Em vez do "como" questiono-me sobre o "quando".
    Há um tempo limite? Há um tempo demasiadamente antecipado? Imaturidade vs loucura?

    Que sei eu, que sei eu!

    Beijinho.

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    1. Olá GL,

      Está a fazer a pergunta a uma veterana que tem um misto do que refere, imaturidade e loucura. Paixão, fúria, amizade, tolerância, cumplicidade e essas coisas todas. Tudo ainda muito vivo passado mais de mil anos...

      Mas também eu: que sei eu, que sei eu!

      Um beijinho, GL!

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