Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

22 janeiro, 2013

eu permaneço aqui de guarda à água lisa


Outros vão. Tu foste. Eu também podia ter ido. Talvez até contigo. Mas não sou de ir em fantasias, não sou de largos voos. Queria, mas não sou. Ou melhor: finjo que sou. Mas faltam-me as largas asas, falta-me a ambição, o destemor, a loucura. Digo que sim, que tenho tudo isso, mas tu sabes que não é verdade.

Era verão, o sol estava manso, dourava-nos a pele e, pelos teus silêncios, eu percebia que estavas prestes a partir. O mundo chamava por ti. Se ficasses ter-me-ias apenas a mim. Eu estaria aqui, junto a esta praia na qual o rio se entretém, estaria como sempre estou: pronta e disponível para te amar. Mas isso nunca foi suficiente para ti e eu aceito. Quem quer ir não deve ser convencido a ficar. Quem quer ir, só indo poderá um dia voltar; se não for, nunca cá estará.

Não te pedi, pois, que ficasses; apenas te pedi que não te despedisses. E, por isso, um certo dia abriste as asas e, sem palavras, partiste. Não chamei por ti. Fiquei em silêncio olhando o rasto de saudade que se desenhava no imenso espaço que cruzavas.

Agora está muito frio, escurece muito cedo, e eu não te tenho para me poder encostar a ti, para me beijares a curva do pescoço ou a prega entre os seios, para me segurares as mãos desoladas, para impedires que o frio cubra a minha pele. Mas não olho o rio nem o céu tentando descobrir-te na intangível linha do horizonte, nem as minhas palavras constroem preces por ti. Não. Espero, apenas espero, tranquilamente. Guardo as margens do rio. 

Guardo esta água branda que te trará até mim, eu sei que sim, que um dia voltarás para mim. Nesse dia nada te direi, apenas te beijarei, meu amor, meu amor. Guardo, pois, estas frias águas nas quais os dois mergulharemos nesse dia, nus, noite dentro, seres do fundo do mar, amantes perfeitos.



[Abaixo de mais um poema perfeito de Vasco Graça Moura, três momentos felizes, três grandes interpretações de uma das canções perfeitas de José Afonso]


Gaivota em terra, pensando nas suas decisões - e o Tejo, gelado, ali ao lado


                                   as aves migram em setembro.
                                   nem vou com elas, nem
                                   guardo delas
                                   a mínima memória.

                                   escurece mais cedo,
                                   o tempo não se rouba,
                                   escoa-se como o frio
                                   por uma camisola

                                   até dentro da pele.
                                   as aves migram
                                   calmamemte. eu
                                   permaneço aqui

                                  de guarda à água lisa que viu passar seus bandos
                                  e em que hás-de debruçar-te


['XXIV poema de nó cego, o regresso' de Vasco Graça Moura in 'Poesia Reunida I']

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Sentado estás
no meu silêncio
presente
na estranha distância
de não te ter
Olhas-me
Imagem
tenho-te em mim
porque tu
tu que partiste
me habitas.



[Poema de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]

4 comentários:

  1. uns vão, outros ficam...
    e setembro será melhor para partir ou ficar (ou regressar?)

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    1. Olá Patrício,

      O inverno é tempo para ficarmos dentro de nós próprios - tempo, pois, de espera. Em Setembro, depois dos desatinos do verão, se resolvem os destinos.

      Muito obrigada pela leitura certeira que sempre faz das palavras.

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  2. Olá UJM!

    Desculpe...mas mais uns versinhos. Será que a condizer???

    Sentado estás
    No meu silêncio
    Presente
    Na estranha distância
    De não te ter
    Olhas-me
    Imagem
    Tenho-te em mim
    Porque tu
    Tu que partiste
    Me habitas.

    um abraço

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    1. Olá Joaquim,

      Se a condizer...?!

      Mais do que isso! São as minhas palavras ao espelho, ou são as palavras do poema que voaram e voltam a pousar.

      Vou já lá colocar em cima.

      Muito obrigada!

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