Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

28 janeiro, 2013

É belo o tempo de Inverno, no silêncio


Nestes dias de inverno, cai o céu, cai desbragadamente, desaba toda a água que os deuses guardavam, ou agitam-se os ares em feroz vendaval, há uma qualquer vingança que se cumpre. Sem piedade, sem critério. As árvores são arrancadas, o rio engrossa, perde as boas maneiras, arrasta troncos, arranca as canas, arranca flores, frutos, arrasta telhas, restos de tudo o que encontra pelo caminho, as vidas mais frágeis. Em dias assim, o rio torna-se medonho, pesado, escuro, ruge como um monstro acossado - e nós aqui, onde o rio avança para o grande mar, assistimos, indefesos, à inclemência dos elementos da natureza.

Mas depois, de repente, vem o sol. E o rio fica um espelho, um chão de luz. Traz ainda folhas, frutas vindas sabe-se lá de onde. Mas tudo fica calmo. Quem veja assim o rio num dia de sol brando não diria o que se passou horas antes. Fingimento da natureza? Não. Desfez-de mágoas, de depressões, arrancou de dentro de si todos os vendavais que lá guardava. E, libertando-se de todas as cargas, eis que fica leve, disponível para a beleza suave.

As gaivotas, então, descem dos abrigos onde antes se refugiavam, descem dos ares onde antes soltavam gritos de aflição, e pousam, suaves bailarinas, neste lago. Eis que, quais princesas luminosas, se passeiam, felizes, tranquilas. Chegam, elegantes, pousam com gentileza e encantam-se com a brandura deste inverno que sabe também ser tão doce.

E o silêncio é leve, cheio de luz, e acolhe-nos como uma mãe perfumada e quente. É Janeiro, a vida prepara-se para renascer e, com um tempo assim, tão suave, já ninguém se lembra do abraço de morte que, pouco antes, derrubou as vidas mais frágeis, as mais desatentas árvores.



[Abaixo do belo poema de Inês Lourenço, temos de novo Glenn Gould, agora com Bach, sempre um grande intérprete]


Gaivotas no Tejo, junto ao Ginjal



                                          É belo o tempo de Inverno,
                                          no silêncio, a lenha húmida
                                          das maternas canções da chuva.
                                          Na lentidão de Janeiro
                                          fica mais longe a morte. As aves
                                          habitam nos beirais
                                          como príncipes destronados.


                                          ['Ária' de Inês Lourenço in 'Câmara Escura', uma antologia]

*



Gaivotas 
amigas do vento
ensinam o olhar
a olhar
a memória
e o pensamento.




['Haiku, talvez a propósito' ...:) de Joaquim Castilho em comentário aqui abaixo]

*


Árvore, cujo pomo, belo e brando,
natureza de leite e sangue pinta,
onde a pureza, de vergonha tinta,
está virgíneas faces imitando;

nunca da ira e do vento, que arrancando
os troncos vão, o teu injúria sinta;
nem por malícia de ar te seja extinta
a cor, que está teu fruito debuxando.

Que pois me emprestas doce e idóneo abrigo
a meu contentamento, e favoreces
com teu suave cheiro minha glória,

se não te celebrar como mereces,
cantando-te, sequer farei contigo
doce, nos casos tristes, a memória.


Luís Vaz de Camões



[enviado por Ana de Sá em comentário aqui abaixo]

6 comentários:

  1. OLÁ UJM!

    Haiku, talvez a propósito!

    Gaivotas
    amigas do vento
    ensinam o olhar
    a olhar
    a memória
    e o pensamento.


    um abraço

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    1. Olá Joaquim,

      Ontem fui logo a correr pôr este belo haiku lá em cima.

      Mas não tive força para agradecer pois estava perdida de sono... Espero que não me leve a mal.

      Muito obrigada, gostei muito. coloquei-o ali para se ver melhor mas hesitei se não ficaria era melhor junto à fotografia. Gostei mesmo.

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  2. UJM,
    É óbvio que não se aplica a si, mas por vezes lembro-me de Brecht:

    "Do rio que tudo arrasta se diz que é violento
    Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem."

    Abraço

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    1. Olá jrd,

      Eu também me lembro e acho que deve mesmo ser isso que acontece. Estas alterações climáticas, tudo isto. E mesmo as minhas árvores. eu andei a transformar arbustos silvestres em árvores altas. Mas não devem ter raízes de árvore pois o vento arrancou-as com facilidade. E o meu pinheiro e o meu cipreste... o terreno é pedra, pedra, pedra. Se calhar não é adequado para segurar árvores de grande porte. Eu achei que poderia transformar aquilo num bosque ou ter belas árvores de sombra. E lá estão e lá têm estado. Em condições normais aguentam-se mas talvez não possam resistir a golpes traiçoeiros e violentos. A natureza é, por natureza, indomável e nós queremos moldá-la, amestrá-la. Por isso, é a natureza que é violenta e somos nós que a violentamos?

      PS: Já viu a diferença entre nós? A si bastam-lhe meia dúzia de palavras, se tanto. Eu, embalo na conversa (escrita) e vou por aí fora (ao vivo não sou tagarela mas aqui, a escrever, pareço, não é?)

      Um abraço, jrd.

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  3. as árvores no temporal, ontem

    a memória, agora

    Camões, sempre




    Árvore, cujo pomo, belo e brando,
    natureza de leite e sangue pinta,
    onde a pureza, de vergonha tinta,
    está virgíneas faces imitando;

    nunca da ira e do vento, que arrancando
    os troncos vão, o teu injúria sinta;
    nem por malícia de ar te seja extinta
    a cor, que está teu fruito debuxando.

    Que pois me emprestas doce e idóneo abrigo
    a meu contentamento, e favoreces
    com teu suave cheiro minha glória,

    se não te celebrar como mereces,
    cantando-te, sequer farei contigo
    doce, nos casos tristes, a memória.

    Luís Vaz de Camões


    Agradecira,

    A.de Sá

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    1. Olá Ana de Sá,

      Muito obrigada. Não conhecia este soneto. Coloquei-o lá em cima pois acho que tem que ter o devido destaque. Além disso, reparo uma falta grave da minha parte. Tenho colocado aqui pouquíssimos poemas de Camões. Nem sei explicar porquê pois, de cada vez que me lembro disso, penitencio-me mas, depois, outros se sobrepõem. Pego nos livros ao acaso para escolher um poema e os meus livros de Camões são encadernados, parece que são livros diferentes, a minha mão não vai até eles.

      Gostei muito que lhe tivesse ocorrido este poema tão adequado às circunstâncias. Um dia vou escrevê-lo lá num dos meus muros. Muito obrigada.

      Um abraço, Ana de Sá!

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