Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

20 janeiro, 2013

Antes de um lugar há o seu nome


Que lugar é este que se alojou no meu coração? 

Para este lugar vou com o meu amor, vou sempre com o meu amor. 

Muitos caminhos percorremos antes, antes de aqui chegarmos. Descobrimo-nos no meio de inflamada paixão, escolhemos um ninho junto ao céu onde nos espantávamos com a nossa imensa sorte por podermos lavar os olhos num rio largo, amplo, com uma baía mansa, muitas cidades a ladear o rio. E, de lá, abraçados, víamos as trovoadas e os raios que rasgavam os céus, e o sol que se punha em chamas nas tardes de calor, e a chuva e o vento inclemente, e as gaivotas de largas asas. A vista era a toda a volta, o espaço era imenso, imenso. E nós, amigos e amantes, estávamos aquietados no nosso ninho, com as nossas crias, e não nos lembrávamos de percorrer caminhos desabrigados junto a ruínas.

Não, nessa altura frequentávamos jardins e parques, praias, museus, e caminhos convencionais.

Tínhamos uma cadela que era da nossa família, uma menina muito doce, e, em conjunto, fazíamos a nossa viagem feliz, venturosa.

Até que um dia, já éramos de novo apenas os dois no nosso amado ninho, descobrimos que os nossos caminhos iam dar a este lugar mágico. Um refúgio desabrigado. Um rio já perto do mar, casas em ruína, pescadores à linha, gatos vadios, gaivotas livres, barcos à vela, uma maresia fresca, uma neblina por vezes doce, um vento por vezes rude, um frio tantas vezes cortante, um céu que não acaba, a cidade que amamos do outro lado. E nós ali sempre juntos. Vamos e vimos, e sempre juntos. Este é um lugar que se desenha dentro dos nossos corações, que se alojou nos nossos corações.



[Abaixo do vigésimo poema de Maria do Rosário Pedreira, Poetisa com lugar cativo no Ginjal, temos um novo momento feliz, desta vez Ana Moura e Pedro Abrunhosa. Eu não sei quem te perdeu.]


Ruínas no Ginjal, vistos através de um buraco que, de novo,
apareceu aberto num paredão rente ao caminho


                                                  Antes de um lugar há o seu nome. E ainda

                                                  a viagem até ele, que é um outro lugar
                                                  mais descontínuo e inominável.

                                                  Lembro-me

                                                 do quadriculado verde das colinas,
                                                 do sol entretido pelos telhados ao longe,
                                                 dos rebanhos empurrados nos carreiros,
                                                 de um cão pequeno que se atreveu à estrada.

                                                 Íamos ou vínhamos?


[Poema de Maria do Rosário Pedreira in 'A Casa e o Cheiro dos Livros')

*


Aconteceu 
um outro acontecer
não em outro
mas naquele lugar
o lento despertar 
de um estranho segredo.
Um rumor de selva
que se adivinha
rajadas de vento brando,
barcos 
em mãos de desejo.
E o olhar de água
como que desfeito
longe,
mesmo muito longe, 
felizmente longe
de qualquer razão.



['Terá sido assim?' de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]

*


Não sei onde queria estar hoje segunda feira
talvez pisando a neve que enfeita as ruas de Paris
ou escrevendo um poema num quadrado que se chama sempre comentário
tricotando com agulhas grossas um cachecol
(sim de lã)
talvez ensaiando o queijo fresco que a minha filha sabe fazer e me ensinou
ou então
rabiscando o desenho do meu modesto recanto de Verão
nos "mares do Sul"

tédio, mau humor
irritação de não saber porquê
a cabeça cheia de sonhos e projectos
e o corpo(o "raio" do corpo)
indolente expectante aparvalhado
mastigando devagar uma maçã

Que raiva esta
perder assim ingloriamente
um dia do precioso calendário
irritante desperdício
ou repouso necessário?

Quem sabe...talvez amanhã seja diferente.



['"Dia de chega para lá' de 'Era uma Vez' num comentário aqui abaixo]

4 comentários:

  1. ERA UMA VEZ21 janeiro, 2013

    "DIA DE CHEGA PRA LÁ"

    Não sei onde queria estar hoje segunda feira
    talvez pisando a neve que enfeita as ruas de Paris
    ou escrevendo um poema num quadrado que se chama sempre comentário
    tricotando com agulhas grossas um cachecol
    (sim de lã)
    talvez ensaiando o queijo fresco que a minha filha sabe fazer e me ensinou
    ou então
    rabiscando o desenho do meu modesto recanto de Verão
    nos "mares do Sul"

    tédio, mau humor
    irritação de não saber porquê
    a cabeça cheia de sonhos e projectos
    e o corpo(o "raio" do corpo)
    indolente expectante aparvalhado
    mastigando devagar uma maçã

    Que raiva esta
    perder assim ingloriamente
    um dia do precioso calendário
    irritante desperdício
    ou repouso necessário?

    Quem sabe...talvez amanhã seja diferente

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    1. Erinha,

      Este seu poema deixou-me a rir. Conheço esses dias. Quando estive de baixa, sozinha em casa, sem nada que fazer, tanta vontade de fazer tanta coisa e, afinal, uma indolência colada a mim que me entorpecia... e só às quinhentas me vinha a vontade de fazer qualquer coisa.

      Mas uma coisa lhe digo... com preguiça ou sem preguiça as palavras saem-lhe sempre harmoniosas, bem cerzidas, um gosto de ler. Escrever poemas, fazer um queijo ou um cachecol de lã são tarefas de mãos que têm a delicadeza da transformação da matéria prima num produto acabado que é fruto de cuidado e carinho.

      Por isso, pode ter preguiça à vontade que o resultado é bom na mesma.

      (E ainda estou a rir...)

      Um beijinho, Erinha!

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  2. Olá UJM!
    Terá sido assim?

    Aconteceu
    um outro acontecer
    não em outro
    mas naquele lugar
    o lento despertar
    de um estranho segredo.
    Um rumor de selva
    que se adivinha
    rajadas de vento brando,
    barcos
    em mãos de desejo.
    E o olhar de água
    como que desfeito
    longe,
    mesmo muito longe,
    felizmente longe
    de qualquer razão.


    um abraço

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    Respostas
    1. Olá Joaquim,

      Uma vez mais o meu espanto pelo 'tiro' certeiro. Terá sido assim, sim. Tomei a liberdade de dar o nome 'Terá sido assim?' porque me pareceu que calhava mesmo bem ao poema - a pergunta e a resposta. Perfeito como uma luva.

      Já lá está em cima e... bendita arca que tantos e tão bons poemas guarda.

      Muito obrigada.

      Um abraço!

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