Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

19 dezembro, 2012

Uma parte de mim parte sem mim


Estou cá em cima, junto às nuvens, junto à copa das árvores, junto às palavras que voam. 

Daqui de cima te vejo. Caminhas rente à orla do Tejo, percorres os caminhos que o rio deixa na rebentação, caminhas na areia. 

O velho casario está deserto, abandonado. Em dias assim até as gaivotas se afastam, gritando, procurando um amparo que por aqui não encontram.

Vejo-te avançar cabisbaixo. Talvez procures vestígios de outras vidas no rebentar da ondulação, talvez procures vestígios de ti. Talvez nem procures nada, talvez caminhes apenas, vazio, disponível para uma nova vida.

Partiste e, ao partires, partiste-te. Atrás de ti ficou o que foste. Pela frente tens o que serás. E é nesse preciso instante em que o teu passado e o teu futuro se encontram que eu te vejo, percorrendo o imenso silêncio, sozinho, descobrindo o teu caminho, construindo a tua vida. Que seja ela uma vida inteira, a vida com que sonhas. A vida de um homem inteiro, íntegro.



[Abaixo do velho casario e do sempre novo rio, temos o encantamento de um pequeno poema de Mia Couta. Um poema como eu hoje estava mesmo a precisar. Logo a seguir um belo momento de violoncelo, e é ainda a música de Elger]


O casario do Ginjal e o Tejo



                                       Uma parte de mim
                                       parte sem mim
                                       e, assim, partida,
                                       em mim nasce repartida,
                                       ávida e sem fim,
                                       a vida inteira, enfim.



                                        ['Despedida' de Mia Couto in 'idades cidades divindades']

4 comentários:


  1. Quase que oiço o grito da gaivota e também a rebentação, esta em especial, é um som familiar aos meus ouvidos. A onda que se forma alta muito alta,enrola-se enrola-se e depois espraaaia-se.

    Aqui o tema da partida que também me é muito familiar, por cada partida uma partida em mil bocados.

    E Mia Couto que diz tanto, que traduz um mundo de sentimentos muito bem captado, diria que pela sua pena, UJM, mas já não se usa, não é mesmo? Mas o teclado não desmerece, não, na visibilidade que nos dá da sua excelente capacidade de nos transmitir emoções.

    Bj

    Olinda

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    1. Olá Olinda,

      Há momentos em que o meu olhar recebe imagens que, felizmente, consigo que a máquina capture e, depois ainda, essas imagens encontram palavras que as explicam.

      Eu é que não consigo, por vezes, explicar esta conjugação. Mas, quando ela acontece, eu fico intrigada mas contente.

      Obrigada pelo seu incentivo e pelo carinho das suas observações.

      Um beijinho, Olinda.

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  2. Que maneira espantosa de sentir a solidão "que fica".

    Abraço

    Boas Festas

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    1. jrd,

      Há alturas em que as suas palavras não me fazem rir. São as que me tocam.

      Obrigada.

      Um abraço.

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