Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

03 dezembro, 2012

Que a onda é imagem do tempo, que ela corre como o tempo corre sobre a vida


Sobre um mar de água azul, eleva-se uma outra água, altaneira, sobranceira. Avança, cavalga as águas que correm mansamente, desperta atenções. Da margem, os olhos enfeitiçam-se, que grande onda, que mar tão grande, espectadores de margem, admiradores da força quando longínqua. Mas há outros, os que se arriscam e querem montá-la e fazer cavalinhos, outros querem cavalgá-la e ir à garupa, outros querem vencê-la, furá-la, intrépidos cavaleiros sobre uma onda resfolegante de patas erguidas ao céu.

E a onda avança, bela, limpa, forte, invencível.

Mas, quando perde a força e se desmancha (tudo se desmancha), eis que a grande onda vem, vagarosa, súplice, lamber os pés de quem dela se aproxima. Cãozinho meigo, língua doce, beijinhos de espuma, a onda vem, menina, banhar os pés dos homens.

E os homens sentem-se enfeitiçados, a grande onda veio beijar-lhe os pés, fica, onda, fica, envolve-me.

Enganoso. A onda é enganosa. Quando se afasta de novo (e sempre se afasta), deixa atrás de si um rasto de vida arrancada pela raiz, troncos, árvores, conchas, roupas, tudo.

É como o tempo, o tempo apenas aparentemente belo, amigo mas, de facto, traiçoeiro, enganoso, destruidor. O tempo que sepulta a vida.

Apenas vencem a onda, e o tempo também, aqueles que os deuses amam e que conseguem libertar-se da lei da vida, os artistas, os doidos, os anjos.



[Abaixo da onda no Tejo, um inspirado poema de João Miguel Henriques e, logo abaixo, mais uma bela interpretação de uma outra obra de Haydn]



No Ginjal, rasto deixado por uma onda no Tejo num dia de vento



                                     que da onda nos era contado
                                     ser espírito autónomo e solto
                                     viajando lesto sobre os mares
                                     crescendo sempre e sempre indiferente
                                     a danos, desaires, modos de corpo
                                     e nós ali escutando tudo sobre a onda
                                     a grande vaga, o maior abarcamento
                                     sem ainda perceber ou suspeitar
                                     (só mais tarde e com que estrondo)
                                     que a onda é imagem do tempo
                                     que ela corre como o tempo corre
                                     sobre a vida, sem detença
                                     sepultando tudo sob as águas


                                     ['Da onda' de João Miguel Henriques in 'Isso passa']

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HAIKU


Morta
Na praia te encontrei
Concha vazia
Exausta
De percorrer o mar.


[Do Leitor Joaquim Castilho num comentário abaixo]

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Enganas-te 
não estava nem morta nem vazia
o teu olhar apressado é que não viu
(raramente vê)
o brilho clássico da preciosa pérola
ansiosa pela tua descoberta

na certa
só tu sabes porquê...


[Da Leitora 'Era uma Vez' num comentário abaixo]



6 comentários:

  1. As ondas do tempo que por nós passa, por vezes são fortes demais e deixam marcas, principalmente quando não somos nem artistas, nem anjos.
    Acabamos por ficar, isso sim, doidos!
    Lindo e profundo texto.
    MCP

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    1. Olá MCP,

      Tem razão, é isso que penso. Por vezes a onda passa com tal força que arranca pela raiz, arrasta, uma coisa triste.

      Mas talvez haja algumas árvores ou algumas coisas que vão dar a uma outra margem e renasçam ou sejam encontradas por quem lhes dará valor. Eu acredito nisso.

      Um beijinho, MCP



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  2. JOAQUIM CASTILHO04 dezembro, 2012


    Mais um belíssimo texto, pouco manso como o Mar!

    HAIKU

    Morta
    Na praia te encontrei
    Concha vazia
    Exausta
    De percorrer o mar.

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    1. Encantada, encantada, Joaquim Castilho, encantada. Já lá está em cima e, como verá, das suas palavras já nasceram outras palavras. Encantada. Comovida, mesmo.

      Obrigada.

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  3. Enganas-te
    não estava nem morta nem vazia
    o teu olhar apressado é que não viu
    (raramente vê)
    o brilho clássico da preciosa pérola
    ansiosa pela tua descoberta

    na certa
    só tu sabes porquê...

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    1. Erinha,

      Apetece-me continuar a escrever 'encantada, encantada'. Que contente e comovida fico. Quando das palavras nascem palavras eu fico assim, é a reprodução das palavras em que os filhos nunca são iguais aos pais, têm vida própria. Já lá estão também em cima, claro.

      Que bem ficam ao pé umas das outras.

      Muito obrigada!

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