Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

16 dezembro, 2012

As palavras mordendo a solidão, atravessadas de alegria e terror, são a grande razão, a única razão


A solidão intransponível, a incompreensão sem remissão, a estranheza de que dá vontade fugir.

Pelo contrário, a atraente largueza dos espaços, o mar, o horizonte aberto e limpo.

E, então, sentindo o vento, eu, daqui, olhando-te ao longe - nós dois tão distantes, quase estrangeiros - penso que não sei se quero transpor esta distância. As minhas pernas, o meu peito, a minha boca. Eu. Eu aqui. Tu, ao longe, distante, visto daqui tão insignificante.

Dizes querer-me. Dizes querer as minhas mãos, os meus afagos, os meus beijos. Fazes poemas em que toda eu estou num altar. Dizes que eu sou a tua razão de viver, a tua única razão. Exageros.

A verdade é que não sabes amar-me como eu quero ser amada. Que me interessa ler que as minhas pernas são colunas triunfantes, que o meu peito é fluido, feito de água, que a minha boca tem a cor de um fruto que apetece comer? Que me interessa isso? São palavras, só palavras.

Onde os gestos? Onde os actos? 

De que me serves tu, estando assim, tão longe de mim? De que me servem palavras loucas quando a minha boca sente o travo tão amargo da solidão?



[Abaixo do belo poema de Eugénio de Andrade, abro a semana dedicada a um novo compositor, Elger. Um prazer a sua música]



Fim de dia à beira do oceano


                               O teu rosto inclinado pelo vento;
                               a feroz brancura dos teus dentes;
                               as mãos, de certo modo, irresponsáveis,
                               e contudo sombrias, e contudo transparentes;

                               o triunfo cruel das tuas pernas,
                               colunas em repouso se anoitece;
                               o peito raso, claro, feito de água;
                               a boca sossegada onde apetece

                               navegar ou cantar, ou simplesmente ser
                               a cor dum fruto, o peso duma flor;
                               as palavras mordendo a solidão,
                               atravessadas de alegria e de terror,

                               são a grande razão, a única razão.


['Litania' de Eugénio de Andrade in 'Os poemas da minha vida' de Miguel Veiga]

*



Mais do que no riso
na distância
se descobre
o peso doce da ternura
a presença ausente
o halo exacto
de quem está longe.
Tu 
estás presente
no meu silêncio
nos vazios opacos
do meu tempo
estás
mesmo sem estar
Tu
um pedaço assumido de mim.



[Poema de Joaquim Castilho num comentário abaixo]

4 comentários:

  1. Olá,

    É sempre bom vir aqui ao Ginjal e encontrar um belo poema do Eugénio de Andrade.

    Obrigada!

    Antonieta

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    1. Obrigada eu, Antonieta, pela sua presença.

      Eugénio de Andrade já aqui veio ter comigo 26 vezes e muitas mais vai vir, é um poeta muito querido no Ginjal.

      Um abraço.

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  2. JOAQUIM CASTILHO17 dezembro, 2012

    Será isto o que o seu belo texto quis dizer? Entendi bem?


    Mais do que no riso
    Na distância
    Se descobre
    O peso doce da ternura
    A presença ausente
    O halo exacto
    De quem está longe.
    Tu
    Estás presente
    No meu silêncio
    Nos vazios opacos
    Do meu tempo
    Estás
    Mesmo sem estar
    Tu
    Um pedaço assumido de mim.

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    1. Fico sempre tocada quando sinto que das palavras nascem palavras. Fico sempre tocada quando vejo como alguns eleitos são capazes de destilar a escrita e produzir poemas.

      Obrigada.

      Vou colocá-lo lá em cima.

      Não identificou a autoria pelo que vou colocar o seu nome. Se considerar que devo nomear, antes, a Gudula Steglitz, por favor indique-me, está bem?

      Um abraço.

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